Tia Felicinha – 100 anos de
história
Em 1917 o mundo assistia ao
desenrolar da Primeira Grande Guerra. Enquanto as grandes potências mundiais
estavam em conflito, a Vila do Curador, na época Distrito de Barra do Corda, ia
se desenvolvendo sem pressa, distante da agitação dos grandes centros.
Naquele ano nasceu, nos Estados
Unidos, o filho ilustre John Kennedy, que mais tarde se tornaria o 35º
presidente daquele poderoso País. No Brasil, veio ao mundo Jânio Quadros, nosso
22º presidente. Na Vila do Curador despontou, no dia 28 de março, Feliciana
Nunes Guterres, nossa querida Felicinha. Desses citados, a única que segue com
vida.
Naquele tempo na Vila não existia
energia elétrica, nem água encanada, mas a pequenina Felicinha encontrou
conforto e aconchego em sua grande família.
Seu pai, Diolindo Luiz de Barros,
detinha o posto de Capitão da Guarda Nacional. Em primeiras núpcias, fora
casado com a senhora Maria Barros, com quem teve 6 filhos: Gentileza, Bento,
Francisco, Maria(Maroca), Genézia(Sinhazinha) e Reginalda.
Com o falecimento da primeira
esposa, casou-se com Maria José Nunes Barros, mais conhecida por Zezé. Desse
último relacionamento surgiram: Deoclécio, Maria(falecida ainda criança), José
(Zeca), Feliciana(Felicinha), Estevão, Basiliano(Bazu), Teresinha, Frederico
(tio Barrim).
Interessante observar que o
registro civil era realizado em Barra do Corda, então sede do município. O
senhor Diolindo, de posse das informações sobre os inúmeros filhos, partiu a
cavalo para a sede com o intuito de registrá-los. Na ocasião acabou ocorrendo
um grande equívoco, pois ele trocou os anos de nascimento de Feliciana, nascida
em 1917, pela do filho Estevão. Por essa razão, na Certidão de Nascimento de
Feliciana consta erroneamente o ano de 1919 como o de seu nascimento.
Além dos treze irmãos citados,
Felicinha sempre lembra com carinho da existência de outros três: Isabel, Luísa
e Frederico, que faleceram ainda crianças, em uma semana trágica, vítimas de
uma epidemia de sarampo.
Provavelmente esse foi o primeiro
evento a lhe trazer profundo sofrimento. A cena da morte de seus irmãos e a
loucura que acometeu sua mãe nos meses próximos seguintes lhe marcaram
profundamente. De tal maneira que, ainda hoje, relata a cena com sensibilidade,
e destaca que o episódio fez com que ela assumisse responsabilidades novas,
como por exemplo lavar a roupa da casa, pois as lavadeiras da região recusavam
o serviço, receosas com a epidemia que acometera a família.
Durante a sua infância, a pequena
vila do Curador não possuía uma escola formal, com um prédio físico. Por essa
razão a educação ficava por conta dos chamados Mestre-escola, que ministravam
aula para a criançada em suas próprias residências. O primeiro mestre-escola do
Curador foi Eloy Barbosa Uchoa. Depois vieram os professores Tonico Braga e
Neném Assunção. Aliás, foram esses dois os mestres de Felicinha até o terceiro
ano do primário quando ela teve que se mudar para Pedreiras para continuar os
estudos.
Na nova cidade passou a residir
com seus avós maternos, José Almeida e Maria(Marica). Lá estudou no Grupo
Escolar "Oscar Galvão". Foi em Pedreiras que conheceu o jovem Antônio
Celestino Guterres Martins, que trabalhava como escriturário na "Mercearia
Cateb". Eles namoraram por pouco tempo e logo firmaram compromisso. O ano
provável do casamento foi 1934.
O relacionamento não durou muito
tempo. De uma das inúmeras viagens a trabalho, ele não voltou mais. Ainda
assim, Feliciana considerava-se uma senhora casada e por isso não contraiu
novas núpcias. Apesar da situação adversa, nunca ocupou o lugar de vítima. Pelo
contrário, sempre foi uma mulher grata e ativa. Trabalhou como costureira,
preparando enxovais infantis e bordando colchas e toalhas. Preservou um pequeno
rebanho, fruto dos animais enjeitados que ganhava de presente dos irmãos.
Posteriormente construiu salões para aluguel, de modo que nunca faltou
mantimento em sua casa, podendo declarar como o salmista, em Salmos 37.25:
"Já fui jovem e agora sou velho, mas nunca vi o justo desamparado, nem
seus filhos mendigando o pão”.
De volta a Presidente Dutra,
acompanhou o crescimento e desenvolvimento da cidade. Observou a construção do
primeiro prédio escolar do Curador, em 1937: o Grupo Escolar "Magalhães de
Almeida", situado na rua de mesmo nome, no local onde hoje está a casa do
Sr. Noveli Sereno.
Em 1953, possivelmente tenha
vibrado quando o prefeito Gerson Sereno instalou um motor de luz e implantou
cerca de 200 postes de madeira em algumas das ruas do centro. E, em 1972,
quando a CEMAR(Centrais Elétricas do Maranhão), tomou o controle do setor
elétrico no município, instalando dois motores mais potentes com grupos
geradores capazes de levar energia também às residências e ao comércio.
Feliciana também foi testemunha
da construção, em 1947, do primeiro templo evangélico de Presidente Dutra: a
Igreja Cristã Evangélica, construída na rua Magalhães de Almeida, fruto do
trabalho evangelístico do missionário canadense Perrin Smith, que chegara em
1930 ao Curador, anunciando as boas-novas de salvação. Ressalte-se que a
primeira convertida da Vila do Curador foi a sra Gentileza, irmã mais velha de
Felicinha.
Esses são apenas alguns dos
inúmeros acontecimentos que os muitos anos de vida lhe oportunizaram
presenciar. Basta conversar alguns minutos com ela para perceber que há mais,
muito mais. Por isso esta noite é tão especial. Quem tem a oportunidade de
chegar aos 100 anos de vida?! Quem tem o privilégio de atravessar tantas
primaveras, resistir a tantos invernos, contemplar as folhas do outono e o sol
luminoso do verão?!
Aliadas aos cabelos brancos vêm a
sabedoria, as memórias, experiências incontáveis. Como está escrito em
Provérbios 20.29: "A beleza dos
jovens está na sua força; a glória dos idosos, nos seus cabelos brancos".
Quanta história tem esses cabelos grisalhos!
Desde que me entendo por gente
Tia Felicinha é uma presença marcante em minha vida, com seu corpinho serelepe,
sorriso contagiante e marra característica. Ela é do tipo que não manda recado,
nem passa despercebida, faz amizades com pessoas de todas as idades e tem
conselhos pra dar e vender. Sempre gostei de ouvir suas histórias, mesmo quando
elas se repetiam.
Com certeza, tia Felicinha está
no rol de mulheres que mais me impressionaram e inspiraram. Apesar de ter
nascido em um tempo em que a mulher era desprezada, fez e faz sua voz ecoar.
Diante das intempéries, guardou o que era bom. Do abandono, não herdou rancor.
Em suas mãos sempre o livro preferido: a Bíblia. Entre as páginas sempre papéis
com marcação. Quando lemos juntas ela sempre aplaude e diz:
- Minha filha, marque aí. Esse
versículo é muito importante, quero lembrar depois.
E eu sempre objeto.
- Mas, tia, a Bíblia já tem
tantos papéis que o que fica em destaque é a página em branco.
Ela ignora o que eu digo e não
descansa enquanto eu não cumpro a incumbência dada.
Mesmo sem ter terminado os
estudos, me admiro de sua visão de mundo e educação. Ela sempre tem papel e
caneta para suas anotações e registros. Mesmo com tantos anos, a vida continua
a encantá-la. Acho que esse é um de seus segredos. Ela contempla a natureza
sempre maravilhada, percebe as formigas e as rosas menina. Festeja cada gesto,
surpreende-se com a tecnologia:
- O ser humano é muito sabichão.
Como conseguiu inventar uma coisa dessas?! E no final ela sempre glorifica ao
Criador da natureza e da inteligência humana.
Por ela ser essa mulher versátil,
sensível e observadora é que muitas vezes tenho a impressão de que converso com
uma amiga de minha idade, tal a sintonia. Aos adolescentes, ela gosta de dizer:
“não tem melhor amigos do que seus pais”. Aos jovens apaixonados: “ore para ver
se é da vontade de Deus o casamento”. Aos casais: “perdoem-se e não discutam na
frente dos outros, nem quando o seu cônjuge estiver irritado”.
Quando eu tinha 13 anos ela me
deu uma missão: guardar a sete chaves uma boneca de porcelana, a última
lembrança concreta que seu grande amor lhe deixou. Tomei aquela tarefa com
seriedade, pois eu sabia tudo o que ela representava. Mantive aquele objeto
envolto em muitos paninhos e papéis para que não quebrasse. Se tia Felicinha a
guardou por tanto tempo, eu deveria cuidar daquela pequenina com igual zelo.
Hoje a boneca tem mais de 80 anos e tenho o prazer de dizer pra senhora, amada
tia, ela está aqui intacta e bem cuidada, como quero que a Sra. esteja não só
hoje, mas todos os dias.
Que Deus a abençoe hoje e sempre!
Que seus dias sejam para o louvor e a glória de Deus! Que sua vida continue a
inspirar pessoas e a fazer diferença nesta terra! Porque não importa nossa
idade, Deus nos criou para este propósito especial e louvo a Ele por ver que a
Sra. ainda crê e desempenha com maestria o seu papel neste mundo.
(*) Lara Laríssa é escritora, advogada e
jornalista, e coordena o portal Palavrasprabeber.com.
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