AOS QUE SE DESILUDIRAM COM A
LITERATURA E A VIDA LITERÁRIA
Cunha e Silva Filho
É com
tristeza que, de quando em quando,
vejo um amigo me dizer que um colega deixou a literatura de lado; foi cuidar de outras coisas, de jardins, de rosa e da vida, que é breve e, como a
maré, não espera por ninguém
segundo um adágio inglês. Um vez, li, numa história sintética da literatura
norte-americana, que uma grande poeta de
lá, ao final da vida, lamentou-se mais
ou menos nestes termos: “ Oh, como perdi
tanto de minha vida pessoal
por causa da literatura! Por que
não dei mais valor à vida, à minha vida,
que é muito mais importante do que a
literatura?”
Quando um escritor,
amante dos livros e da escrita, desiste pela afastamento, em vida, da literatura, o faz pelo suicídio, conforme ocorreu com
Ernest Hemingway( 1898-1961) e com
outros autores do mundo inteiro. É
muito lamentável que possa acontecer isso, mas, ao mesmo
tempo, quem somos nós para penetrarmos
nos recônditos da alma do
artista, a fim de reprovarmos o que faça com o que mais - assim
o pensamos - lhe deu prazer
na vida? Adiante vou tentar
levantar algumas hipóteses.
Uma delas seria a constatação de que o autor nada tinha mais a escrever, ou que o fazia porque achava que teria dito por escrito tudo aquilo
que queria. Para outro
autor, seria por falta
de força de criatividade, ou seja, porque o poço secou. Se tentasse mais, qualquer
livro seria repetitivo ou teria
uma qualidade inferior a obras
anteriores.
Cada escritor tem sua história de
desistência e uma delas seria a
confirmação de que o sucesso nunca chegaria à sua porta. Por que insistir
naquilo que não lhe daria satisfação e sentido de realização plena? Perderia,
assim, a crença na sua
individualidade artística, i.e.,
deixaria de representar qualquer
uma daquelas cinco soluções para o conceito de literatura formulado por Raúl Castagnino, na obra Qué es literatura?
: sinfronismo, ludismo, evasão, compromisso e ânsia de imortalidade.
É óbvio que ninguém escreve para o
vazio, quer dizer, para não ser lido nem
apreciado. Quem escreve precisa de
feedback, de quem lhe dê atenção, de
quem o leia, e o que se nota, hoje mais do que no passado, é a ausência
de leitores, eles mesmos com dificuldades de dar prioridade a esse ou àquele autor. Quem chegar à ideia
de números de leitores de Machado de
Assis, que se dê por satisfeito... Mas que seja
reconhecida a certeza de que nenhum
leitor é obrigado a ler esse ou
aquele autor, dentre de um oceano
de opções, não só no seu
próprio país, como em escala
global. Seja entendido que o que aqui
estou meramente especulando
é um terreno movediço e cheio de
susceptibilidades.
Centremo-nos, porém, nos dois aspectos assinalados no título deste artigo. A
desilusão do autor, por múltiplas
razões, é uma questão
abissal, que fere todo o mecanismo psicossomático do autor e, se ele não estiver armado
de grande força de resistência,
sucumbirá diante da avassaladora
engrenagem seja das mídias, seja
do mundo editorial, seja do contexto
intelectual de cada país, desilusão com as editoras, todas quase preocupadas com os lucros
e fortemente protegidas contra
a perda de receitas. Poder-se-ia
perguntar: isso já havia no
passado, diria melhor, nos anos vinte,
trinta, quarenta, cinquenta, sessenta do século passado? Seguramente que sim.
Grandes escritores brasileiros
tiveram que custear sua obra de estreia. Manuel Bandeira (1886-1968)
foi um deles e assim por diante. E hoje,
a situação se tornou ainda mais
espinhosa e não mudou muito.
Vários escritores jovens ou menos
jovens estão publicando
livros por conta própria, já que, se dependerem de editoras, das chamadas grandes editoras, dos
melhores selos nacionais, do
elitismo editorial brasileiro, jamais terão seus livros lançados. Primeiro, porque têm que passar
pelo crivo de seus conselhos
editorais, exigentes para alguns autores e flexíveis para outros que
façam sintonia com a sua linha ideológica e editorial, segundo porque, posto ser compreensível, não desejarão bancar livros que não lhes
interessem nem um pouco. Dessa forma, a
despeito dessas grandes editoras, os autores
teimam e terminam bancando com
sacrifícios seus próprios
livros que, se caírem no
gosto dos leitores, poderão
ser vendidos ou serem encalhados.
Assim aconteceu comigo e com outros
autores. Por outro lado, ainda
estão vigentes outras formas de publicações: as custeadas por
convênios entre entidades
privadas e públicas, que
nada custarão aos bolsos dos autores. Se, contudo, as obras, agora as estrangeiras, fazem sucesso lá fora, aqui são logo
agasalhadas, traduzidas e vendidas, mormente se forem best-sellers, obras de autoajuda e
assemelhadas. Tudo isso vai pesando na
consciência dos autores que se
sentem inferiorizados, mal prestigiadas até chegar ao ponto de
exaustão, que leva ao desestímulo e à consequente desistência
da atividade de escritor.
Nada
há certo quanto ao destino dos
autores e livros. A história do
livro só atesta algo insólito: livros antigos, de repente, são redescobertos pelos
editores de hoje e são
publicados. A fama que deveriam ter
desfrutado no tempo de seu lançamento
só o futuro caberá resgatar. Outros permanecerão
no limbo assim como a
memória da glória efêmera que já
tiveram. A sorte de um livro é, pois,
imprevisível. Só o tempo dirá de autores e obras. No presente, tudo são
incertezas, incompreensões, injustiças
e silêncios.
Conscientes de todos essas injunções em
torno da literatura, alguns autores de hoje tendem a pensar em desistir no meio do caminho onde haverá
sempre uma pedra como no famoso poema de
Drummond. Não critico autores e estudiosos que se afastam
de seu ofício nem tampouco penso que
sejam covardes ao desistirem de seus propósitos e de seus projetos diante de uma realidade que lhes é cada vez mais
ingrata, traiçoeira e competitiva.
De outra parte, falando da vida
literária, outros tantos óbices
enfrentarão os autores menos
visíveis, sobretudo aqueles que não formam igrejinhas, nichos
e grupelhos de que a vida
literária, mais no passado que no presente, se nutriu mais para o lado do compadrio do que para uma saudável
convívio na comunidade literária. Ora, quem estiver
fora desses grupos fadados está a ser deles alijados, seja por entidades culturais,
sejam pelo mercado
editorial que, além disso, faz a
mediação entre autores
por sua orientação
ideológica, tanto quanto se vê
também nas diversas mídias, não só nas metrópoles mais importantes do
país como também nas capitais com
vestígios ainda fortes de provincianismos. Sorte têm alguns
happy few escritores nacionais que ganharam notoriedade pela alta qualidade de suas obra e conseguiram
se manter isolados e avessos a badalações
criadas pelo marketing
de livros e pelas luzes da
ribalta dos novos.
Ao discutir a questão da vida literária, nos vêm
logo à baila os vícios reprováveis
do cabotinismo, da capadocismo e
das traições literárias, ainda tão
comuns entre intelectuais,
principalmente nas capitais menores, como, de resto, foi no passado.
Basta ver o que, sobre esse tema, com coragem
e ácida crítica discorre o
historiador e crítico literário Afrânio Coutinho num ensaio
pouco conhecido das gerações de hoje, No hospital das letras.(Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1963,188 p.). Sempre que um país ainda está preso a esses
bairrismo, a essas parti-pris, a
essa negação do real papel
do intelectual na vida literária
nacional ou dos Estados, quem perde é a
literatura e a cultura brasileira.
Onde existem estrelismos,
favoritismos, grupos fechados e
elitistas, quer de academias literárias,
quer de academias de
universidades, sempre sofrerão os que estão de fora, na condição de meros pacientes do
aplauso dos mandarins da literatura. E a questão da vida
literária não termina aí, porque, mesmo
dentro do grupinhos, das instituições culturais,
haverá os costumeiros
estrelismos e favoritos, os que
se julgam donos da verdade no campo cultural e, o
caso, no
terreno da literatura –
espaço onde grassam a inveja, o despeito, as picuinhas,
as fofocas, as rasteiras, as atitudes subalternas
de oportunistas, os falsos, a competição desleal, os arrivistas, os que representam os papéis dos personagens do conto de Machado de Assis (1839-1908), “Um
apólogo,” que compõe os contos da obra Várias histórias, um diálogo cheio de
ironias e presunções, entre a agulha e
um novelo de linha, narrativa
ainda tão atual na sua prospecção da natureza da alma humana quando levada à
esfera literária, os que se consideram “poderosos” nas decisões de quem entra ou de quem não entra nas instituições que antes
deveriam servir tão-só à inteligência, à produção
e à divulgação democrática do saber, da experiência e do conhecimento.
Para alguns autores,
a combinação desses dois aspectos
aqui ventilados é o principal
fator determinante de decisões
de alguns intelectuais pela
desistência de um projeto de vida ou de sadia convivência na
comunidade intelectual.
Entretanto, seria algo utópico que
nossa vida literária, no âmbito nacional, fosse uma mar de rosas. Os
autores se multiplicaram em proporções
gigantescas. A população de leitores também
cresceu ainda que, no caso brasileiro,
sejam ainda baixos os índices de leitores comparados com países
adiantados. Por outro lado,
contraditoriamente, fecharam-se nos últimos anos várias grandes livraras e os
sebos foram liquidados pela sebo
virtual, como serve de exemplo a Estante Virtual.
Da mesma forma, cresceu visivelmente o mercado de livros
didáticos, sobretudo de livros
estrangeiros. E ainda para manter
a contradição, várias pequenas editoras
surgiram no país. Dessa
maneira, aponta-se um outro elemento
na questão entre autores e vida literária: esta sofreu o impacto fortíssimo do espaço virtual, dos sites, dos blogs, dos e-books, dos meios virtuais com
informações que podem armazenar
quantidades enormes de obras
da grande literatura universal
que caíram no domínio público.
Todo esse novo e trepidante instrumento virtual ao nosso alcance
desencadeou novas formas de vida
literária vindo a misturar o mundo real
e o virtual. Só que, desta vez, como
ilhas independentes, dispersas, impessoais,
modificando profundamente os velhos hábitos de antiga vida
literária, sobretudo daqueles encontros tão comuns de escritores, alguns vindos de outras
partes do país, na Livraria São José,
anos 1940, 1950, para citar um só exemplo, num
Rio de Janeiro mais calmo e menos volátil.
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