sábado, 8 de junho de 2019

Rute Barros - Um amor incondicional à arte




Rute Barros - Um amor incondicional à arte

José Pedro Araújo
Historiador, cronista, contista e romancista

Tínhamos praticamente a mesma idade. Por uma questão de dias, ou mesmo por pressa minha, não escolhemos o mesmo dia para comemorar o nosso aniversário. Segundo contam, foi uma esperteza da minha parte, pois utilizei a sua rede novinha em folha primeiro que ela. Minha mãe não tivera tempo de concluir a minha, e por isso fiz uso da sua. Seguimos com nossas vidas muito próximas até que o Criador resolveu interromper isso ao convidá-la para pintar paisagens celestiais.

Rute nasceu uma garotinha diferente, não com aspecto de sertanejo como nós outros. Enquanto seus irmãos (quase todos) possuíam tez amorenada, ela nasceu loira e com profundos e cintilantes olhos azuis. Enquanto os demais membros da família iam se estabelecendo no entorno da casa paterna e materna, ela escolheu, ainda muito jovem, a distante São Paulo para fixar sua morada. E enquanto todos os manos e manas escolhiam profissões conhecidas e praticáveis no meio em que viviam, ela buscou o difícil caminho das artes plásticas, dificuldade para ninguém botar defeito. Enfim, havia nascido com a têmpera dos que dão preferência aos desafios da vida.

Sem ter frequentado uma só aula de pintura – na minúscula cidade não havia nenhum adepto da arte do pincel e da paleta de cores – desde cedo já fazia as suas experiência na arte abraçada por Von Gogh. O primeiro quadro pintado por ela de que me lembro, passou anos dependurado na parede da nossa copa: uma paisagem que ilustrava um esplendoroso lago no qual nadavam alguns patinhos. Um detalhe: ela havia se apropriado de um espelho retangular com moldura, pintou-lhe as bordas para parecer a terra, desenhou árvores no seu entorno, e depois colocou os patinhos a nadar dentro dele. Estava formado um belo e luminoso lago de águas cristalinas.

Depois não acompanhei mais a sua evolução no metiê. Desgarramo-nos um do outro. Ela foi para São Paulo, e eu tomei outro rumo, passei a perambular por lugares sempre diferentes, até fixar raízes em Teresina. Certa vez, encontrei-a em São Paulo. Já morava por lá há muitos anos, e depois de trabalhar em diversas funções, montara o seu próprio estúdio de beleza na sua residência. Viva confortavelmente sem precisar enfrentar a correria dos demais residentes da Pauliceia desvairada.

Pude ver, naqueles dias que passei como seu hóspede, que não havia desistido da ideia de pintar. Nas paredes da sua casa era possível ver inúmeras telas de sua autoria,  algumas delas retratando o seu torrão natal.

Certo dia, tomei conhecimento de que havia passado o seu estúdio para uma parente que já trabalhava com ela havia alguns anos. E que resolvera viver exclusivamente da arte da pintura. Àquela altura da vida, confesso que fiquei surpreso com a sua decisão, posto saber que ela possuía clientela fiel e auferia bons dividendos com o seu trabalho.

Tempos mais tarde, tomei conhecimento de que, com calma e persistência, as coisas estavam indo muito bem. Rute já participava de Vernissage em São Paulo, e em muitas outras cidades do sudeste. Vivia agora exclusivamente da sua arte, da venda de suas telas. E foi assim até que uma doença tolheu-lhe os passos e a empurrou de volta para a terra natal onde viveria seus últimos instantes, fazendo o que mais gostava: pintar obras de arte.

Artista intuitiva, sempre disposta a experimentar novas técnicas de pintura, era de uma generosidade e honestidade a toda a prova. Generosidade que a fazia presentear algumas pessoas com suas obras - acredito que por notar que o admirador não possuía recursos para fazer face aquela despesa. Honestidade por nunca procurar passar adiante uma obra da qual ela mesma não gostasse. Como aconteceu comigo certa vez. Estava eu escolhendo um de seus quadros para comprar, quando me deparei com uma tela que retratava uma paisagem rural. Inebriado com a sua beleza, disse-lhe que queria aquela pintura.

Ao que ela me respondeu: essa é uma experiência que acho que não deu certo.

Insisti que havia gostado muito. Ela retrucou mais uma vez dizendo que, além disso, quando da sua viagem de volta, alguns quadros haviam se rasgado. Aquele era um deles. Continuei insistindo, e lhe pedi que desse um jeito nele.

Vou abreviar a história e dizer que ela ficou um pouco contrariada comigo. Não gostaria de vender algo de que não gostava, e que ainda por cima estava com problemas. Dias depois, entregou-me a pintura recuperada. Havia consertado o local do rasgão, e sobre ele pintara uma minúscula carroça com seu condutor. Mal dava para notar o conserto, ou mesmo visualizar o intruso no cenário. Rute Barros foi a introdutora de uma profissão nova no velho Curador.   

Fonte das ilustrações e do texto: Blog Folhas Avulsas

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