Cabeça de cera
Pádua Marques
Romancista, contista e cronista
Pompílio
se agachou e se pôs a coçar os pés que ardiam como em brasas depois de ter
passado por cima de um formigueiro naquela vastidão de carnaubeiras na parte
mais deserta da Ilha Grande de Santa Isabel. Um sol de rachar os miolos. E
suando muito não tirou dele a ambição de olhar pra aquelas palmeiras naquele
meio de dia e pensar que, se tudo desse certo conforme prometido a Gastão
Carneiro, haveria de em pouco ter dado um salto e tanto na vida. Não havia
nascido pra viver e um dia morrer pobre.
A
mulher Nonata havia ficado em casa com os três filhos. Rosinha, a mais velha,
menina de uns doze anos e já furando os bicos dos peitos, Teresa, a do meio, de
dez anos e o mais novo, Gerônimo, de sete pra oito anos. Este, desde que nasceu
que se tinha por muito doente. Coisa de pele. Umas feridas que davam pra coçar
e tomando o corpo, só livrando mesmo a cabeça. Em tudo quanto foi médico na
Parnaíba ele foi consultado, mas nenhum deu resposta do que se tratava a
doença. O alívio era os três banhos por dia com raspa de casca de cajueiro,
dados pela avó, dona Maria Tilim, metida a ler mãos pra adivinhar a sorte.
Havia
quem dissesse que aquelas coceiras de Gerônimo eram coisa de sua mãe ter sangue
ruim e que o menino tinha tudo pra depois de grande virar lobisomem. Nonata
sofria muito pela pobreza, a doença do filho e com o que diziam sobre quando
crescesse. Se crescesse. O marido Pompílio não era de reclamar da vida, mas era
ambicioso e inquieto. Tinha na cabeça que um dia ainda haveria de sair daquele
padecer com a família e até dar, se possível, escola pra os filhos que viviam
correndo pra cima e pra baixo entre a casa de taipa dentro do carnaubal e a
casa da outra avó, Mariana, a dona Véia, viúva de Raimundo Pereira, o Mundico
da Arraia.
Tudo
gente vinda do Maranhão e muito pobre. Nos tempos de cheia das lagoas se
danavam a pescar de rede ou de tarrafas e o pouco conseguido levavam pra
Parnaíba, onde iria ser vendido nas ruas próximas da igreja de Nossa Senhora da
Graça. Na época de trabalhar na derrubada da palha de carnaúba, até que entrava
algum vintém, que ia logo pagar o fornecimento pela compra de querosene,
açúcar, azeite, uma louça, algum metro de pano pra roupa de Nonata e das
crianças. E nisso seu Gastão Carneiro corria a mão na caneta ou do lápis na
gaveta pra saldar no caderno o que vendia fiado pra Pompílio, filho de Mariana,
a dona Véia, dos Morros.
Gastão
Carneiro era dono de um dos armazéns onde se vendia de um tudo na rua Grande,
onde estava todo o movimento de comércio na Parnaíba naquele início de século
XX. Magro, rosto fino e bigode mais ainda, idade de uns cinquenta anos mais pra
cima, rapaz velho, vivia sempre com os olhos voltados pra beira do rio pondo
sentido em quem vinha subindo o barranco. Bem que podia ser gente rica, vindo
da Tutoia ou até mesmo de São Luiz em algum vapor, em ponto de fazer grandes
compras ou fechar sociedade. Mas se contentava em dia de movimento fraco a
mexer nas prateleiras anotando e alterando os preços das mercadorias.
Tinha
por único empregado, o Damião, um negro lá de seus quarenta anos, sempre pronto
a obedecer aos mandos do patrão ao menor sinal. Quando não havia freguês se
punha a fazer contas de somar, diminuir, multiplicar e dividir num papel de
embrulho no final do balcão. Foi indicação do pai, Afonso Carneiro, quando lhe
passou o destino e o futuro do estabelecimento. Que pegasse um negro que fosse
esperto, o ensinasse a ler e a contar e que sendo bem de feição e obediente, sem
vício de bebida e de engraçamento com mulheres da vida dos Tucuns ou da Coroa,
colocasse no armazém pra lhe ajudar. De certo que depois de desarnado e com
pouco de tempo e paciência podia passar pra o balcão.
Negociava
com pó de carnaúba e entre seus fregueses estava o inglês Wallace Groover,
homem de uns quarenta e poucos anos, cabelos acobreados e já ficando brancos,
dentes amarelos, roupas encardidas, suado e sempre fumando um cachimbo feito de
sabugo de milho. Metido a jogar galanteios e pilhérias pras mulheres. Por esses
e outros hábitos não era bem quisto pelas famílias de comerciantes da rua
Grande, oficiais da justiça, padres e outras autoridades. Mas Mister Groover ou
seu Groover, como era mais conhecido pelo pessoal da rua e do porto Salgado, se
sabia que era tido e havido nas casas de gente rica e negociantes de pó de cera
de carnaúba, os ingleses e franceses.
No
final da tarde, já o sol se ponto por trás dos carnaubais da Ilha Grande de
Santa Isabel, vinha ele se sentar, saído da pensão Bauss, de Eponina Bauss, em
alguma porta de armazém a convite de seu dono e naquele estado se punha a se
pabular da vida de inglês e vez por outra até criticava os costumes da gente do
Brasil e da Parnaíba. Um ou outro ia puxando a conversa. E nesse tempo em que o
porto ia se acomodando e ganhando o silêncio e a escuridão da noite, Groover
voltava pra pensão ou quando estava mais afoito pela bebida de conhaque, se
danava no rumo dos Tucuns à procura de mulheres da vida.
Chegavam
notícias vindas da Tutoia de que a cera de carnaúba estava ganhando preço na
Europa e nos Estados Unidos da América. E Groover foi um dos que mais bateu
palmas na rua Grande com esta notícia. Consultou Gastão Carneiro sobre como
estava a produção de pó de cera na Parnaíba e quem poderia fornecer este produto
sem o risco de agiotagem. Pagamento em libras esterlinas, a moeda mais alta em
todo o mundo, se gabava. Falou e falou muito e bonito. Disse até que falaria em
breve com o cônsul inglês sobre a possibilidade de sua majestade o rei da
Inglaterra, terra onde dizia que o sol nunca se põe, comprar um pedaço da Ilha
Grande de Santa Isabel!
Os
embarcadiços, negros estivadores, vagabundos, bêbados e até os faltos de juízo
de toda sorte vieram ouvir o inglês com aquela gabolice toda. Batiam palmas,
davam gargalhadas, contavam piadas indecentes, tentavam falar alguma palavra da
língua inglesa, dançavam uns com os outros. Groover agora rasgava elogios ao
Brasil, sua gente, as mulheres, principalmente as negras, a aguardente, as
frutas. E aquela conversa tomava o rumo direto da noite e das casas baixas e
imundas do Cheira Mijo e da Coroa.
Lá
no meio daquela imensa mata de carnaubeiras, Pompílio estava com a mão na
cabeça e era assunto de seu ofício. Era de como iria dizer pra mulher Nonata
que o dinheiro apurado com a venda da palha naquele ano mal dava pra tapar uns
buracos na dívida com Gastão Carneiro, tão logo pendesse pra Parnaíba naquele
meado de agosto. Olhava os imensos campos cobertos de mata-pasto e salsa
subindo as dunas no rumo da Pedra do Sal, os alagados cheios de peixes ruins,
os ninhos de xexéus e de periquitos tomando as carnaubeiras.
Carnaúba
já não tinha mais valor de venda. Imaginava vender tudo, pouco mais de duas
léguas. Tudo pra tirar umas poucas arrobas de pó de cera, o cansaço dele e dos
animais puxando a carga, o pagamento de algum ajudante, a canoa no Igaraçu.
Depois ter que aguentar conversa de Gastão Carneiro e de outros. Mas foi o que
recebeu de Deus e presente de Deus ninguém renega. Recebeu aquela ponta de
carnaubeiras do seu pai, Mundico Arraia, marido de Mariana, a dona Véia. Foi
dada como herança pra iniciar a vida depois de se juntar com Nonata.
Pó
de cera era tudo o que dava aquele tipo de negócio. Tinha tempo que dava
dinheiro, no que dava pra apagar alguma dívida na praça da Parnaíba. A vida era
assim, ordinária e sem muita graça pra pobre e ainda mais sem instrução.
Soubesse ler e contar talvez ninguém lhe passasse a perna. Chegava com a carga de pó de cera e o
comerciante ficava conversando com o comprador naquela língua que ele Pompílio
não tinha entendimento. O mundo era assim. Uns sabiam falar, comer na mesa,
fazer discurso, se vestirem bem e melhor. Ele não. Era só pra passar vergonha
porque não sabia de nada. Tinha mal o nome.
E
aqueles campos todos cobertos de carnaubeiras. Que custavam tanto e tantos anos
pra dar palha em condições de corte. Iam cobrindo até a beira do rio, tomando
os alagados, ainda eram de onde tirava alguma coisa pra sua família ter em
casa. Queria uma roupa boa, um calçado, uma faca com bainha de couro cravejado
de pedras, daquelas que um dia viu e se admirou num armazém na rua Grande.
Vestido pras filhas e pra Nonata e algum agrado pra Gerônimo. Esse filho que
lhe causava desgosto por causa da doença que doutor nenhum na Parnaíba disse o
que era.
Mas
bem que podia vender. Não tudo, mas umas braças de terra e com o dinheiro apurado
ir pra São Luiz, no Maranhão, correr atrás de saber que diabo era aquilo no
menino. Coisa mais feia. Chegou em casa e foi direto pra camarinha. Largou a
pensar e lembrou que ainda havia pó de cera, mais de dez arrobas. Foi e fez o
cálculo. Dava pra tirar algum vintém. No outro dia iria de cretado na Parnaíba
negociar com Gastão Carneiro aquela mercadoria. Nem tratou com a mulher. Era
coisa que não queria criar encrenca dentro de casa.
Gastão
Carneiro estava naquela manhã interessado em receber uns negociantes de São
Luiz que vieram até Parnaíba oferecer sociedade num negócio de máquinas de
costura. Pompílio chegou e tratou de chamar Damião a um canto. Ofereceu o
negócio da carga de pó de cera de carnaúba. O ajudante de balcão foi tratar com
seu patrão e logo mais veio dizer que a pessoa mais acertada era Wallace
Groover, um inglês que morava na pensão de Eponina Bauss. Era ficar esperando
até à tarde quando ele viesse ter no porto com alguns donos de armazéns. Era
mais que certo. Damião falou e falou bem do inglês, assim como o conhecesse. E
tanto falou que acabou impressionando Pompílio. Voltou pra Ilha Grande de Santa
Isabel pronto pra organizar a carga e dentro de mais uns dois dias voltasse pra
fechar negócio.
Aquele
terror de sol queimando o couro da cabeça, o suor escorrendo pelo queixo de
barba mal feita, fez Pompílio juntar os quatro jumentos com a carga de pó de
carnaúba e atravessar a região mais deserta de Ilha Grande de Santa Isabel no
rumo do porto Salgado. Damião, o negro do armazém não jurou que o inglês
Groover vinha toda tarde conversar com Gastão Carneiro? E essa era a vez de
chegar com a carga de pó de cera de carnaúba e oferecer negócio. Quem sabe que
daquele primeiro negócio não viessem outras encomendas!
Pensava
alto. Na mulher mais bem cuidada, nas meninas estudando numa escola boa na
Parnaíba, um colégio de freiras, talvez. A troca da mobília de casa, uns
animais pra ajudar na cata da palha, uma tarrafa nova pra o tempo da
pescaria. Pensava até de falar da doença
de Gerônimo. E assim foi chegando entre veredas e várzeas no porto Salgado.
Descarregou os jumentos e contratou com o pouco dinheiro que ainda tinha o
serviço de uma canoa grande. Os sacos foram sendo empilhados e Pompílio junto
dentro de pouco tempo estava atracando no porto Salgado.
Nem
descarregou o pó de cera de carnaúba. Subiu correndo o barranco e foi dar na
porta de Gastão Carneiro. Pelo que havia falado o negro Damião, o inglês
Groover estava metendo a cara pra mais um final de tarde de conversa. Era a
hora de a onça beber água! Ia chegar oferecendo o pó de cera e a um preço
convidativo. Não tinha como dar errado. Ficou pensando as palavras com que iria
se dirigir ao inglês. Damião o viu de longe e fingiu que não o conhecia.
Pompílio fez um aceno. Fez outro. Nada. O negro estava se fazendo de dono do
armazém, só podia ser!
O
futuro caixeiro do Armazém Carneiro veio dizer meio sem jeito que ficou sabendo
pela manhã, logo no abrir as portas, que Groover havia ido embora da Parnaíba
assim duma hora pra outra saindo pela Tutoia em canoa até alugada. Anoiteceu e
não amanheceu! E pelo que se ficou sabendo, tudo por causa de ter mexido com
mulher alheia, mulher de um dono de curtume, homem muito rico e influente. Na
volta pra os Morros da Mariana, quando a canoa alcançou o meio do rio Igaraçu,
Pompílio puxou a faca da cintura e foi furando um a um todos os sacos. O pó da
cera de carnaúba foi se espalhando na água e sumindo na correnteza.
-
Bem que haviam me avisado que não confiasse em gente do estrangeiro!
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