ENQUANTO NÃO VEM O ALZHEIMER
Antônio Francisco Sousa
Cronista e articulista
Cronista e articulista
Pensava
que Sandoval nem fazia uso do aparelho celular; tanto menos, de aplicativos ou
de redes sociais. Dei com os burros n’água. Naquele dia, ao nos encontrarmos,
foi logo pedindo meu contato de WhatsApp, alegando que era eu um dos poucos
amigos de quem ainda não tinha o número. Verborrágico como sempre, complementou,
dizendo que precisava, antes que fosse tarde, de todos os contatos das pessoas pelas
quais tinha apreço; e eu não poderia ficar fora da lista. Envaidecido, agradeci-lhe,
mas lhe disse que não era usuário de redes sociais, nem do WhatsApp; possuía
e-mails, que ele dispensou – depois de gozar um bocadinho -, porque não tinha
afinidade com os tais computadores.
Quis,
então, saber por que a repentina necessidade de ter todos os amigos na palma da
mão; tendo ele me respondido que era para um caso de emergência, temia a
chegada do malsinado mal de Alzheimer, do qual, aliás, para alguém muito
próximo, ele já teria apresentado alguns sinais. Fez questão de negar essa
possibilidade, mas não descartou desenvolvê-lo no futuro. Era coisa da vida e,
portanto, quem não estaria suscetível a tal desgraça?
Que
história era aquela de já estar apresentando os sinais característicos da
doença? Quis saber. Entre irritado e contrariado, contou-me o que acontecera.
Como
fora instado, naquele dia, a ir a um evento promovido por alguém da família,
onde, certamente, iria encontrar pessoas há muito não vistas, decidiu pôr um
traje da “hora”, como ouvira de um de seus jovens parentes denominar-se assim
uma vestimenta moderna e “bem transada”. Mesmo entendendo bulhufas de que
queria aquilo significar, escolheu uma boa calça e uma camisa considerada
chique e bem alinhada; nos pés, os sapatênis, presente de sua filha.
Para
retirar o odor e a rugosidade da roupa há muito guardada, tomar um bom banho, refazer
a barba, além de poder atualizar seus áudios e vídeos no Instagram e WhatsApp,
aproveitaria o intervalo de tempo que a patroa utilizaria para se “empetecar”,
algo em torno de uma hora bem calculada, ou mais.
Chegara o
momento de me “aprontar”. A partir dali, mestre, viria a desconfiança, da mulher,
diga-se de passagem, sem nenhuma base científica, de que eu poderia estar com
indícios da praga lá de cima, o malsinado Alzheimer. Tudo porque, não vendo a
calça no lugar em que a colocara, perguntaria àquela senhora onde ela a teria
posto. Um “eu não peguei nem vi calça nenhuma”- ”você deve estar louco” -“procure
direito”, fora a resposta dada, lá de dentro do “closed”, local em que a figura
concluía os últimos retoques cosméticos. Ainda paciente, não encontrando a peça,
depois de atirar ao solo tudo que estava sobre o local em que a pusera, como
desencargo de consciência, haja vista ter certeza absoluta de que não a
colocara em quaisquer deles, dirigi-me a outros cômodos da casa para procurá-la.
Vã
procura, como já previra. Espumando pela boca, questionaria minha alegre esposa
se, por acaso, não a teria confundido com alguma roupa dela e guardado juntas.
Claro que não, responderia a cidadã. Óbvio que sim, retrucaria: só aquilo
justificaria o estranho desaparecimento da calça. Vá com outra, homem; estamos
quase atrasados. Não e não, ou vou com ela ou não saio de casa. Assim fica
difícil: não se lembra aonde teria colocado a peça, nem vai usar outra. Fique à
vontade. Quanto a mim, vou pedir aos meninos para me levarem; você, se achar o
que procura, e quiser ir, encontrar-nos-emos lá. Ainda insisti com ela para
procurar a danada em meio a suas roupas; se eu tiver que a procurar ali, a
bagunça estará garantida, ameaçaria. Faça como quiser, falou calmamente; eu não
vou procurar calça alguma. E fim de papo, amigo!
Contei
até cem, jurei me vingar, mas fui com outra calça. Tinha para mim que ela a escondera
porque não queria que eu a usasse naquela oportunidade: talvez não combinasse
com seus trajes.
Confesso-lhe
que, até determinada hora, mesmo rodeado de amigos, conhecidos, gente que não
via há muito, nada me alegrava: estava
possesso, raivoso, iracundo, furioso. Se ela tivesse ficado ao meu lado, em vez
de sair cumprimentando todo mundo, tê-la-ia tratado mal. Eu não estava com Alzheimer,
bolas: ela mudara minha roupa de lugar, bufava, sozinho.
Voltando
para casa, ainda fulo, ordenei-lhe que, antes de dormir, remexesse suas roupas
porque eu tinha certeza de que minha calça estava entre elas. Dito e feito, amigo,
mal ela abriu seu guarda-roupa deu cara de com a dita. É esta? Disse,
ironicamente. Claro, quase lhe destroncando a mão em que ela estava. Vai ver,
sem querer, misturei às minhas. E adentrou à toalete para retirada da maquiagem,
toda feliz. Para não fazer algo impensado, naquele resto de noite dormi em
outro quarto, prometendo me vingar na primeira oportunidade que surgisse. Com
Alzheimer eu não estava, era fato. O mesmo não diria daquela senhora.
Despedimo-nos, com Sandoval sugerindo que, ainda que por economia, me
conectasse ao WhatsApp.
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