quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

ENQUANTO NÃO VEM O ALZHEIMER




ENQUANTO NÃO VEM O ALZHEIMER

Antônio Francisco Sousa
Cronista e articulista

                        Pensava que Sandoval nem fazia uso do aparelho celular; tanto menos, de aplicativos ou de redes sociais. Dei com os burros n’água. Naquele dia, ao nos encontrarmos, foi logo pedindo meu contato de WhatsApp, alegando que era eu um dos poucos amigos de quem ainda não tinha o número. Verborrágico como sempre, complementou, dizendo que precisava, antes que fosse tarde, de todos os contatos das pessoas pelas quais tinha apreço; e eu não poderia ficar fora da lista. Envaidecido, agradeci-lhe, mas lhe disse que não era usuário de redes sociais, nem do WhatsApp; possuía e-mails, que ele dispensou – depois de gozar um bocadinho -, porque não tinha afinidade com os tais computadores.

                        Quis, então, saber por que a repentina necessidade de ter todos os amigos na palma da mão; tendo ele me respondido que era para um caso de emergência, temia a chegada do malsinado mal de Alzheimer, do qual, aliás, para alguém muito próximo, ele já teria apresentado alguns sinais. Fez questão de negar essa possibilidade, mas não descartou desenvolvê-lo no futuro. Era coisa da vida e, portanto, quem não estaria suscetível a tal desgraça?

                        Que história era aquela de já estar apresentando os sinais característicos da doença? Quis saber. Entre irritado e contrariado, contou-me o que acontecera.

                        Como fora instado, naquele dia, a ir a um evento promovido por alguém da família, onde, certamente, iria encontrar pessoas há muito não vistas, decidiu pôr um traje da “hora”, como ouvira de um de seus jovens parentes denominar-se assim uma vestimenta moderna e “bem transada”. Mesmo entendendo bulhufas de que queria aquilo significar, escolheu uma boa calça e uma camisa considerada chique e bem alinhada; nos pés, os sapatênis, presente de sua filha.

                        Para retirar o odor e a rugosidade da roupa há muito guardada, tomar um bom banho, refazer a barba, além de poder atualizar seus áudios e vídeos no Instagram e WhatsApp, aproveitaria o intervalo de tempo que a patroa utilizaria para se “empetecar”, algo em torno de uma hora bem calculada, ou mais.

Chegara o momento de me “aprontar”. A partir dali, mestre, viria a desconfiança, da mulher, diga-se de passagem, sem nenhuma base científica, de que eu poderia estar com indícios da praga lá de cima, o malsinado Alzheimer. Tudo porque, não vendo a calça no lugar em que a colocara, perguntaria àquela senhora onde ela a teria posto. Um “eu não peguei nem vi calça nenhuma”- ”você deve estar louco” -“procure direito”, fora a resposta dada, lá de dentro do “closed”, local em que a figura concluía os últimos retoques cosméticos. Ainda paciente, não encontrando a peça, depois de atirar ao solo tudo que estava sobre o local em que a pusera, como desencargo de consciência, haja vista ter certeza absoluta de que não a colocara em quaisquer deles, dirigi-me a outros cômodos da casa para procurá-la.

                        Vã procura, como já previra. Espumando pela boca, questionaria minha alegre esposa se, por acaso, não a teria confundido com alguma roupa dela e guardado juntas. Claro que não, responderia a cidadã. Óbvio que sim, retrucaria: só aquilo justificaria o estranho desaparecimento da calça. Vá com outra, homem; estamos quase atrasados. Não e não, ou vou com ela ou não saio de casa. Assim fica difícil: não se lembra aonde teria colocado a peça, nem vai usar outra. Fique à vontade. Quanto a mim, vou pedir aos meninos para me levarem; você, se achar o que procura, e quiser ir, encontrar-nos-emos lá. Ainda insisti com ela para procurar a danada em meio a suas roupas; se eu tiver que a procurar ali, a bagunça estará garantida, ameaçaria. Faça como quiser, falou calmamente; eu não vou procurar calça alguma. E fim de papo, amigo!

                        Contei até cem, jurei me vingar, mas fui com outra calça. Tinha para mim que ela a escondera porque não queria que eu a usasse naquela oportunidade: talvez não combinasse com seus trajes.

                        Confesso-lhe que, até determinada hora, mesmo rodeado de amigos, conhecidos, gente que não via há muito, nada me alegrava:  estava possesso, raivoso, iracundo, furioso. Se ela tivesse ficado ao meu lado, em vez de sair cumprimentando todo mundo, tê-la-ia tratado mal. Eu não estava com Alzheimer, bolas: ela mudara minha roupa de lugar, bufava, sozinho.

                        Voltando para casa, ainda fulo, ordenei-lhe que, antes de dormir, remexesse suas roupas porque eu tinha certeza de que minha calça estava entre elas. Dito e feito, amigo, mal ela abriu seu guarda-roupa deu cara de com a dita. É esta? Disse, ironicamente. Claro, quase lhe destroncando a mão em que ela estava. Vai ver, sem querer, misturei às minhas. E adentrou à toalete para retirada da maquiagem, toda feliz. Para não fazer algo impensado, naquele resto de noite dormi em outro quarto, prometendo me vingar na primeira oportunidade que surgisse. Com Alzheimer eu não estava, era fato. O mesmo não diria daquela senhora. Despedimo-nos, com Sandoval sugerindo que, ainda que por economia, me conectasse ao WhatsApp.  

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