O
RITMO “SALIENTE” DA REPÚBLICA
Valério Chaves
Des. Inativo do TJPI
Nestes
tempos de crise econômico, crise política, corrupção, violência, pandemia,
identidade de gênero, orientação sexual, preconceitos e tantos outros males
sociais que assolam o nosso país, ninguém ousa entender a importância da música
popular brasileira, especialmente o samba, como um instrumento privilegiado no
campo da investigação enquanto produto de exportação e protagonista da história
social em nosso país.
O
professor e pesquisador Maurício Barros
de Castro, autor do livro “Nos
Quintais do Samba da Grande Madureira”
(Editora Olhares, 2016) afirma que “a discriminação racial permanece na
sociedade brasileira, e não há como o samba, referência de uma cultura africana
escapar desse preconceito”
O
mesmo pesquisador não concorda que o samba seja um reflexo da história social
do Brasil, mas sim um construtor dessa história e um de seus protagonistas.
No final do século IX e começo do século XX, a
escalada do samba enfrentou forte preconceito, mesmo sabendo-se que o ritmo da
batucada, do pagode, do maxixe e outras ostentações, é oriundo de várias
manifestações culturais africanas trazidas ao Brasil pelos escravos.
Nesse
contexto, vale lembrar um episódio bastante conhecido entre os estudiosos e
historiadores da música ocorrido na noite do dia 26 de outubro de 1914 que
causou espanto na elite política mais conservadora do Rio de Janeiro – a “Noite
do Corta-Jaca” - música de autoria da maestrina Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e
Machado Careca, ambos reconhecidos pelo abrasileiramento da música popular
durante a Primeira República (1989-1930).
Francisca Edwiges Neves Gonzaga
(Chiquinha Gonzaga), para quem não lembra, foi a primeira mulher a receber o
título de maestrina e responsável pela definição da identidade musical em nosso
país, numa época em que as mulheres que ousavam se meter no meio artístico
musical eram vistas com desconfiança e discriminação.
Há
de se perguntar: por que a música “Corta-jaca” causou tanto constrangimento na
elite carioca de então.
Vejamos
o que contam a respeito alguns historiadores sobre a música e dança exibidas
nos salões do Palácio do Catete (residência oficial do presidente da república,
no Rio de Janeiro):
- A
primeira-dama do país, Dona Nair de Teffé, celebrando o quatriênio de seu
marido, marechal Hermes da Fonseca na presidência do Brasil, resolveu animar os
espíritos ilustres e oficiais de seus convidados com uma programação musical um
tanto inusitada para a ocasião, isto porque incluiu no repertório a música
“Corta-jaca” executada por ela própria no violão, acompanhada por seu amigo e
professor de violão Catulo da Paixão Cearense. O fato causou grande alvoroço e
revolta nos meios sociais, inclusive do então senador Rui Barbosa (derrotado
por Hermes da Fonseca nas eleições presidenciais), que da tribuna do Senado,
fez discurso inflamado, afirmando que “a
execução do Corta-jaca, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba, foi ultrajante
porque contaminou em um único evento vários graus de profanação simbólica,
contradizendo um ambiente propriamente oficial, cerimonioso e burocrático”.
O jornal A Rua, por sua vez, em seu editorial
do dia 6 de novembro de 1914, destacou o seguinte: “O Catete deve ser um lugar de respeito. Lá dentro não podem caber os
requebros lascivos de uma música do quilate do “Corta-jaca”. “Se o Sr. Marechal
Hermes , na sua residência particular, no seio de sua intimidade, entre os
amigos mais íntimos, tivesse agarrado o violão e tocado o Corta-jaca ou outra
música mais imoral, nós não tínhamos nada com isso. Mas como S. Exa. faz esta
coisa, em presença do corpo diplomático, no Palácio do Catete, que é a
residência, não do Sr. Hermes, mas do primeiro magistrado da Nação, assiste-nos
o direito de fazer considerações a respeito do papel ridículo a que S. Exa.
sujeitou não à sua pessoinha, mas a figura do presidente ad República”.
A
dança Corta-jaca, além dos passos buliçosos e do requebro sensual do ritmo
“saliente”, os versos ou hipérboles usados na composição de Chiquinha Gonzaga
eram, em síntese, uma espécie de sátira política e social aos costumes e a
situação econômica do país no final do século IX e começo do século XX, como se
extrai da primeira estrofe:
Neste mundo de misérias
Quem impera
É quem é mais
folgazão
É quem sabe cortar
jaca
Nos requebros
De suprema
perfeição
Esta
não foi a primeira vez que a dança e o “sotaque” popular se insinuaram na
prosódia da elite política do Rio de Janeiro. Publicações da época revelam que
em maio do mesmo ano de 1914, o casal presidencial recebeu, no Palácio do
Governo, o compositor e poeta Catulo da Paixão Cearense para um sarau no qual
estavam presentes nomes de destaque nas cúpulas políticas e artística da
República, como José Gomes Pinheiro e Oscar Guanabarino.
É
o que informa o historiador Rafael Nascimento em artigo de sua autoria
publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (nº 67, ps. 38-56) onde
diz que “por volta de 1906 quando o marechal Hermes da Fonseca era ministro da
Guerra fez sua revolta contra o “subversivo” maxixe – primeira dança urbana do
Rio de Janeiro, que fazia os pares dançarem bem coladinhos, praticamente
namorando, deixando muito vovôs e titias de olhos arregalados”.
Cumpre-me
salientar, por fim, que o objetivo dessas informações pesquisadas e extraidas
de fontes culturais merecedoras de crédito, foi simplesmente mostrar que a
nossa música popular é uma arte intimamente ligada à realidade histórica
brasileira, e está baseada num legado imenso de referências herdadas
principalmente dos povos europeus, africanos e indígenas - hoje infelizmente
rotulados com uma variedade de estilos.
Porém,
o principal legado, por certo, foi a abertura do pensamento cultural e aos
valores patrióticos da nacionalidade - virtudes pouco sentidas pelo jurista e
político baiano Rui Barbosa, - (Oráculo do Civilismo) quando em momento de pouca inspiração
intelectual, e talvez sob a máscara de crítico musical, pretendeu associar
gosto e gênero musical com valores morais quando afirmou que a música “Corta-jaca”
apresentada no Palácio do Catete era: “a
mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã
gêmea do batuque, do cateretê e do samba”.
A
esses termos grosseiros utilizados por Rui, a caricaturista Nair de Teffé
reagiu, ao seu estilo, sarcasticamente, publicando uma caricatura do então
senador Rui Barbosa, colocando abaixo o seguinte comentário:
“As
pedras que ele me atirou não me atingiram. Elas dormem esquecidas no fundo do
mar ou na terra e só serviram para assinalar a luta que enfrentei contra os
preconceitos de então” (Livro de Nair de Teffé da Fonseca. A verdade sobre a Revolução
de 1922, Rio de Janeiro, 1974, p.45) (ref.
Website: www.riodejaneiro.aqui.com).
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