Café de dias amargos
Pádua Marques
Romancista, cronista e contista
Seu Belarmino agora era de pouco
sair de casa, mas naquele sábado de abril de 1942 deu vontade de ir até o
Mercado Central, ali perto da sua casa na Marquês do Herval, próximo da praça
de Santo Antonio. Era cedo da manhã e ele com a criada Buita, andando dois
passos atrás, ia seguindo naquele silêncio quebrado pelo canto de algum
passarinho vindo dos fundos da casa do coronel Epaminondas. Mas o antigo corretor
de cera de carnaúba e de coco babaçu, no porto Salgado, ficava pelo caminho
esperando algum conhecido pra puxar conversa. E esse conhecido naquele dia foi
Mundico Castro.
Mundico Castro, o Mundico Caroba,
homem de boa altura, pele queimada, cabelos ficando brancos, ia concordando
aqui e ali, metia a opinião nesse ou naquele assunto. Seu Belarmino depois de
ter chegado em frente ao armazém de seu Antonio Thomaz da Costa, com o dono se
pôs a falar dos tempos passados em que tentou meter na cabeça da gente rica da
Parnaíba, agora afundando em dívidas, que desde 1930 a cera de carnaúba e o
babaçu estavam sendo rejeitados e caindo no mercado internacional, mas ninguém
deu ouvidos.
Passou um conhecido e seu
Belarmino lembrou os tempos de Pena Boto, o capitão da Marinha, que sempre
falou mal da Parnaíba e da teimosia de seu Josias Moraes Correia sobre o porto
de Amarração. Depois veio aquele trabalho todo com o canal de São José, a briga
pra ficar com a Tutoia, a questão do Figueiroa, os navios perdidos. Brigas
entre as famílias ricas que até deram em intrigas pra vida toda.
Belarmino e a criada iam
caminhando devagar, olhando e esticando o pescoço pra esta ou aquela
mercadoria, cutucando as frutas, as verduras, perguntando o preço do marisco,
da farinha, do feijão e da fava. E ele ia mandando que ela comprasse e fosse
botando esta ou aquela verdura ou fruta na sacola.
Ozita, a mulher gorda e pesada,
ficou em casa esperando, pois nunca gostou de meio de rua, muito menos cheiro
de mercado, com aqueles negros, homens, mulheres e meninos fedendo a peixe,
suados e com as roupas remendadas e de tamancos. Mal saía pra assistir a missa
na igreja de Nossa Senhora da Graça, ali perto. Mas naquele dia pediu à criada
que lhe trouxesse jerimum e maxixes. Enquanto isso o marido vinha caminhando
bem devagar e com Mundico Caroba enveredava a conversa sobre a qualidade da
cera de carnaúba que as indústrias passaram a beneficiar.
Certa vez chegou a falar grosso
com o pessoal do Zeca Correia alertando que aquilo não estava certo. A Parnaíba
corria o risco de afundar e levar junto muita gente, principalmente uns que
nunca tinham pegado em dinheiro e que agora viviam importando tudo o que era
luxo, carros de passeio, caminhões, máquinas pesadas e que pelo andar da coisa,
uma guerra na Europa, em breve tudo aquilo ficaria sem serventia. Dizia que se
aquelas paredes do Cassino tivessem boca diriam que ele estava falando a
verdade.
Belarmino agora entrava no
mercado de carnes e de peixes. O dono de um quiosque logo na frente, seu conhecido,
o Pompeu, depois de limpar com um pedaço de pano trouxe um tamborete pra que
ele se sentasse. O velho corretor, amigo e conhecido de todo mundo ali no
mercado, se empolgava ao ver crescendo aquela gente humilde fazer roda pra
ouvir suas histórias, sua raiva contra esse ou aquele. Batia os nós dos dedos
na cadeira, falava mal de Getúlio, de Landri Sales e de Leônidas Melo, os dois
últimos, interventores e que tudo fizeram pra prejudicar a Parnaíba.
Belarmino até podia estar
exagerando, caducando, mas nas suas lembranças de tempos passados havia muita
coisa verdadeira. E aqueles homens cheirando a rapé, a cachimbo, a aguardente,
ficavam encantados ali ouvindo. Ele
lembrava agora dos dois filhos, Belarmino Filho, advogado em São Luís, no
Maranhão, e da filha, Violeta, casada com um médico e morando no Rio de
Janeiro. Era ela quem mandava dizer pra ele tudo aquilo que estava acontecendo
no Brasil e mundo. E ele era também de ouvir a Rádio Educadora.
Pra aquele homem já passando dos
setenta anos e que ainda tinha forças pra de vez em quando se levantar e
naquele mesmo passo amiudado ir até o fundo do alpendre pra conversar com o
xexéu, cantadorzinho que era danado e presente de um compadre e primo de Buriti
dos Lopes, a riqueza na Parnaíba estava mudando de mãos e dentro de pouco seria
a vez de muita gente correr pra política! Getúlio Vargas e os seus aliados não
eram de confiança!
Mundico Caroba, o camarada de
conversa, agora olhava pra criada Buita ali ao lado, querendo dizer pra ela que
pela hora e o sol alto no céu, queria ir embora, mas Belarmino puxava mais
conversa com este ou aquele e as pessoas vinham ver e ouvir aquele homem rico,
amigo de poderosos como seu Roland Jacob e Zeca Correia, que morava em casa de
palacete na Marquês do Herval, tinha rádio e luz elétrica, filha casada com
doutor e filho advogado, andava bem vestido, banho tomado e cheirando a
lavanda, estava no meio do povo.
E um ou outro vinha apertar sua
mão, trazer um menino pra lhe pedir a bênção com a intenção oculta de que ele
abrisse a carteira e dali saísse uma moeda. Belarmino falava agora sem dizer
nomes, de uma gente na Parnaíba naquele ano de 1942 que agora vivia até
comprando avião, dando festas no Cassino num momento de dificuldades com uma
guerra na Europa e tudo o mais! Essas pessoas não mediam carreira e achavam que
a riqueza delas seria pra toda a vida. Quando falava aquilo até tremia os
beiços.
Na volta pra casa Belarmino
mandou que a criada Buita pegasse alguma coisa na cozinha e desse pra aquele
homem pobre e que lhe deu o prazer de companhia naquela viagem ao Mercado
Central. Benedita foi e veio numa pisada só, com uma tigela de arroz com
pedaços de peixes fritos e deu pra Mundico Caroba. Aquela comida era sobra de
janta de Ozita, sua mulher. Ozita gostava de peixe de água salgada e feito
frito. Mas antes de Mundico apertar sua mão pra ir embora de vez, Belarmino
meteu a mão no bolso e tirou uma moeda. Aquele agrado era pra ele tomar um
café.
Nenhum comentário:
Postar um comentário