A morte espera no caminho da escola
Pádua Marques
Romancista, cronista e contista
Benício,
o mais velho dos quatro primos, ia caminhando na frente dos outros por cima da
linha de ferro entre o Catanduvas e a casa da professora Vicentina Brandão no
Macacal naquela manhã de sol que prometia ser forte àquela hora da manhã
daquele março de 1928. Depois e por baixo na vereda, formada entre a linha e o
barranco, vinham os irmãos Vicente e Joana e fechando a fila, Jonas, irmão de
Benício. Uma obrigação de todos os dias desde quando entraram na escola pra
desarnar nas primeiras letras.
Lá
longe e chegando já perto de algumas casas de taipas cobertas de palha de
carnaúba, uma mulher estendia roupas de dormir numa cerca. Do outro lado da
linha de ferro, descendo o barranco, naquele imenso capinzal com uma
carnaubeira aqui e ali a perder de vista no rumo do Sossego, algumas vacas
magras e de chifres pequenos, coisa de cinco ou seis, comiam de cabeça baixa
aquela grama úmida da madrugada. Decerto que as roupas na cerca de varas eram
pra secar depois de terem sido mijadas durante a noite por algum menino pequeno
ou um velho.
Os
meninos passaram e seguiram caminho no rumo da Parnaíba. A mãe de Benício havia
dito que no ano seguinte ele e o irmão Jonas já iriam estudar no Grupo Escolar
Miranda Osório, de seu Zé Narciso. Sobre os primos Joana e Vicente, ainda era
coisa não decidida pelos seus pais. Por enquanto a escola era aquela de
Vicentina Brandão, no Macacal, com outras doze crianças pobres, calçadas de
tamancos, de rostos suados e roupas encardidas, vindas do Catanduvas, dos
Campos e até da Coroa, quase chegando na beira do rio Igaraçu.
E
naquela caminhada pra escola de dona Vicentina Brandão, sem ninguém por perto,
os três meninos e a menina sobem e descem a linha de ferro, saltam e colocam
pedras entre os dormentes e os trilhos, abrem os braços, gritam pra ouvir o
eco, jogam pedras dentro das poças de água cheias de cabeças de pregos. Jonas
sempre está com a baladeira dentro do saco de pano e corre se agachando à
procura de piçarras pra atirar nos xexéus e nas catirinas que ficam em cima dos
tocos de cercas. Benício vem à frente apontando esse ou aquele calango. O tiro
come solto e os calangos fogem.
Mais
à frente avistam uns urubus que estão devorando um animal grande dentro do mato.
Não dá pra ver o que seja, mas só pode ser algum jumento velho ou uma vaca, mordido
de cobra ou morto do mal, assim se babando todo. Aquela carniça no meio do
tempo faz com que os meninos coloquem as camisas ou as mãos nas ventas. Benício e Vicente pegam piçarras e jogam na
direção pra espantar os bichos. Os urubus levantam voo e vão se acomodar na
copa de carnaubeiras ou nas cercas de estacas dos terrenos dos Borges. Os
meninos comemoram aquela façanha e seguem caminho.
Quando
chegam na porta da escola de dona Vicentina Brandão outros meninos e meninas já
estão esperando a professora abrir a porta de casa e logo em seguida todos se
acomodam nas cadeiras. Silenciosos e em fila cada um vai se sentando. Agora não
é mais preciso que cada um traga seu tamborete. Mas mesmo assim os doze
assentos são disputados. Os menores mais à frente, os maiores mais atrás. A
professora queria que as cinco meninas sentassem nas cadeiras da frente e
puxassem as saias cobrindo os joelhos.
Os
bolos de palmatória, objeto de terror da sala de aula e ali segura por um prego
na parede mal pintada, podem começar logo cedo se este ou aquele menino se
comportar mal, responder errado, fizer zoada, incomodar os outros e se
apresentar em desalinho. Benício, o maior de todos na pequena sala de aula
daquela escola do Macacal, é o disciplinador de todos, de seu irmão Jonas e de seus
primos Vicente e Joana. Em algumas ocasiões pode ir buscar a palmatória e dar
bolo em qualquer um a mando de dona Vicentina Brandão.
A
casa onde está a escola de Vicentina Brandão é até que de bom tamanho, caiada
de um azul bem claro, de taipa e coberta de palha de carnaúba. Duas janelas pra
frente da rua no Macacal, com a porta de meia. Na sala da frente era de ser pra
sua família, as duas irmãs, o pai seu Raimundo Inácio, pescador e a mãe dela,
dona Joana, que fica na cozinha o dia inteiro. A sala de aula, no meio da casa, com entrada
por dentro, fica ao lado com duas janelas dando pra o quintal, onde se criam
galinhas e patos, tem o jirau de lavar a louça de cozinha. As plantas são dois
pés de mangas, um limoeiro e outro, um pé de goiabas.
O
chão é de tijolo de barro cru. E tem um
corredor grande e escuro onde estão nas paredes os armadores das redes de
dormir das moças. Mobília pouca. Um banco de potes, os canecos, um armário,
tamboretes e uma mesa de bom tamanho. Decerto que o lugar das refeições da
família. Nas paredes os quadros de santos, São Francisco, Nossa Senhora da
Conceição, São Raimundo Nonato.
Vicentina
é a única das filhas de seu Raimundo Inácio e dona Joana a ter estudado. Mas
isso foi há muito tempo em São Luís, no Maranhão, quando morou com uma
madrinha. Quando voltou pra dentro da casa dos pais foi logo dizendo que queria
abrir uma escola. Era coisa de se admirar a rua inteira no Macacal, a filha de
seu Inácio, sendo professora, a casa cheia daqueles meninos com os calções
remendados, uns limpos, outros nem tanto, as brincadeiras e as risadas deles,
as perguntas dela e as respostas deles, tímidos, curiosos, de olho em tudo que
vinha da lousa. Um dia quem sabe Vicentina podia ser até chamada pra ser da
Escola Normal.
Um
quadrado de madeira escura, preto mesmo, de pouco mais de um metro, pendurado
na parede. E ela, Vicentina Brandão, também professora de catecismo, fica ali
na frente da lousa ensinando a contar, diminuir, multiplicar e dividir, ler e
escrever. Faz perguntas o tempo todo a um e a outro. Tem satisfação do que está
fazendo. Olha um por um e conhece todos eles.
Sabe
ela quais são os mais necessitados, os mais pobres dos mais pobres. De repente
um menino, perto de Vicente começa a bater um tamanco contra o outro e aquilo
incomoda. Uns enredam, chamam por ela. A
professora vai certeira com o olho e a unha pra um puxão bem dado na orelha e
um carão. A sala de aula é tomada por um silêncio de medo. Outros meninos não
querem ter o mesmo castigo. Ninguém manga ou acha graça. Aos poucos vão uns mais
afoitos voltando ao que é ordinário na sala de aula e na esperança de que ela
encerre mais um dia. Finda a aula daquele dia todos voltam pras suas casas.
No
caminho as mesmas brincadeiras de atirar em calangos, assustar os passarinhos,
caminhar se equilibrando com um pé só nos trilhos da estrada de ferro, caminhando
em fila e contando nomes e coisas de adivinhação, contando histórias, fazendo
brincadeiras da boca de forno. No meio do caminho Jonas se lembra de que é
preciso voltar pra pegar sua sacola de pano e a tabuada de aprender a contar.
Voltou na mesma hora. Os outros seguiram caminho se combinando que ele depois
iria atrás. Seria por pouco tempo indo e voltando.
Mas a tentação de mexer em tudo, de ver tudo, de conhecer tudo fez Jonas seguir o trem de ferro que naquele momento fazia manobras dentro da estação saindo de Parnaíba. Ficou abismado com aquela máquina soltando fumaça e aqueles homens rudes, sujos de graxa, suados, praguejando por isso e aquilo, falando nome feio. Não se conteve e subiu num dos últimos vagões. Passou a caminhar dentro de um deles e quando se deu conta estava o trem em movimento saindo noutra direção. Jonas quis saltar, gritou pedindo pra sair. Não deu. Saltou e foi colhido por uma das rodas.
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