ARCA DE NOÉ IV
Vitor de Athayde Couto
Professor, cronista e ensaísta
Passados 40 dias, os bichos
aguardam dezembro. O incêndio será debelado pela chuva, sobre cinzas – onde jaz
o bioma extinto. As antigas riquezas soberanas do Brasil foram totalmente
cremadas. Algumas formigas e cupins, animais resistentes e adaptados a todo
tipo de monocultura, desastres e crimes ambientais, ainda resistem no sub-solo.
Mas o seu esforço já parece ser inútil, para tristeza do tamanduá-bandeira.
Em todo entardecer, o
papagaio-verdadeiro repete, até o recolhimento de Tupã ao seu leito, para todos
ouvirem: acabaram com a saúva, com a saúde, e com o Brasil!
Apesar do estresse do
confinamento sobre as águas, a disciplina dos bichos embarcados é
impressionante, salvo algumas escaramuças envolvendo veganos, outrora
predadores, e, agora, recém-convertidos. Tudo é novidade no novo tempo
pós-anormal. Ninguém nunca tinha visto onça pintada vegana, almoçando chibé com
pimenta na cuia de meia cujuba. Nem tamanduá sugando farelos de rapadura,
sonhando com formigas.
Mesmo ao largo, ainda se pode
vislumbrar o último reduto de oficiais da Marinha. Maltrapilhos e sujos, eles
fogem dos porões do Arsenal. Ali, durante décadas, estiveram prisioneiros,
acorrentados. Na caserna, eles só viam sombras projetadas nas paredes. Do lado
de fora, a luz dos incêndios cega os seus olhos. Tentam voltar, mas, no
interior da caserna, o calor é infernal. As correntes queimam e ferem a sua
pele, nos pulsos e tornozelos. Não resistindo à luz (o conhecimento), todos
começam a morrer lentamente. Essa tragédia nacional, conhecida como “o mito da
caserna”, será muito debatida no futuro, em lives de filósofos brasileiros
pós-anormais. Mas, segundo Mãe Divina, não haverá solução para a sociedade, se
depender das atuais gerações. Não resta dúvida, é mesmo briga de santo. E briga
de santo tem resultados sempre imprevisíveis.
Perto do fogo que destrói a mata
ciliar, a água do rio ferve. Glória a Manitu, os peixes são inteligentes. Eles
buscam água fresca longe das margens, e se afastam do óleo que suja as praias.
Assim, nunca falta comida para os bichos confinados, munidos de redes e anzóis,
conforme Ching havia recomendado durante a armação da expedição “Anime”. Só não
tem arroz, nem feijão, nem milho… É que o governo mandou fechar a divisão de subsistência
e desativou os estoques reguladores do hospício usado como arsenal. Em vez de
grãos, o governo estocou arminhas e glifosato. Infelizmente, isso não alimenta
ninguém, nem apaga incêndios nos biomas ameaçados de extinção.
Na cabine de comando do
rebocador, Ching mira o envelope que ainda permanece lacrado sobre o moquém,
desde que o mico-leão voltou para a Bahia. Ele não faz ideia do seu conteúdo.
Sabe apenas que é endereçado “aos bichos”. No lugar do remetente lê-se “Mãe
Divina”. O mico-leão recomendou a sua leitura somente após 40 dias mais 40,
quando as florestas estiverem totalmente cremadas e só restarem cinzas.
Foi numa quarta-feira de
dezembro, mais precisamente no dia 4, que os bichos, reunidos em assembleia,
assistiram à abertura do envelope enviado por Mãe Divina.
Na estação das chuvas, todos
sentem frio. Não há mais solo, só chão sem vida, parece tabatinga, mas é só uma
lama de cinzas. Na falta de lenha para aquecer o ambiente, os bichos agora
dormem em grupos, bem juntinhos. Na terra não há mais predadores nem predados,
para o agrado de Tupã. Todos se alimentam de peixes.
O envelope contém um papel
escrito com pouquíssimas palavras. Edwiges, único bicho alfabetizado em inglês,
por ter freqüentado a escola de uma ONG ambientalista, lê a carta globalista de
mãe Divina, e traduz para a assembleia silente.
(Continua)
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