Prata de lei do repente
Elmar Carvalho
Aqui só existe corno,
Corno vai e corno vem;
Quem tá chamando é corno,
Quem manda é corno também
E se gritar: pega o corno,
Aqui não fica ninguém.
(Poema feito
por exigência do valentão Zezé Leão, que teria obrigado Zé da Prata a
improvisar uns versos chamando todos os presentes de corno.)
Nesta segunda-feira (17.01.22) deixei na portaria do
condomínio uns livros destinados ao professor altoense Carlos Alberto Dias,
historiador e escritor, que foram recolhidos pelo seu filho, que me deixou
alguns livros da lavra de seu pai, entre os quais o Prata de Lei, 2ª edição,
2019, revista e bastante aumentada, com novos poemas e informações.
Tendo necessidade de marcar consulta com o cardiologista
Leandro Fernandes Cardoso, o contatei por WhatsApp. Aproveitei, na parte de
amenidades, para lhe enviar a seguinte mensagem, referindo-me a Zé da Prata: “Não
gosto de usar a palavra gênio em vão, mas acho que esse poeta popular alcançou,
em vários poemas, lampejos de genialidade, mormente em seus versos considerados
licenciosos ou mesmo fesceninos”. Em sua resposta ele me informou que iria
adquirir esse livro.
Achei importante informar o seguinte para o Carlos Dias,
também pelo zap, sobre o meu pedido para que ele dissesse onde sua obra poderia
ser comprada: “Foi o cardiologista/cangaceiro Leandro Cardoso, que manifestou
vontade de adquiri-lo. Ele é poeta e o maior pesquisador piauiense do cangaço,
mormente do cangaceiro-mor Lampião”. Dias respondeu que o pedido deveria ser
feito a ele próprio, mas que faria em breves dias um volume chegar às mãos de
Leandro.
Tomei conhecimento dos versos desse grande repentista e poeta
popular ainda em 1974 ou começo de 1975, aos 18 anos, através de meu parente
Bilé Carvalho (José dos Santos Carvalho), sempre espirituoso, dotado de muita
verve e notável senso de humor. Bilé, verdadeiro comediante, quando o desejava,
antes de recitar os versos jocosos, relatava com muita graça, com o talento de
um histrião, com sua voz grave, vibrátil, quase de trombone, o episódio que dera
origem ao poema, tão engraçado quanto a própria peça poética.
Alguns anos depois, li esses fatos anedóticos e esses poemas
satíricos e licenciosos nos livros O Piauí na Poesia Popular, de Félix Aires, e
Zé da Prata, o poeta da sátira, de Zózimo Tavares, que lhe traçou o perfil
biográfico e narrou as circunstâncias, quase sempre anedóticas, que lhe foram a
gênese. Sobre o livro de Zózimo disse Carlos Dias na apresentação do livro em
comento: “Deu-se o escritor ao exaustivo trabalho da pesquisa bibliográfica e
de campo, tão necessário ao conhecimento e resgate cultural para as futuras
gerações. E Altos ganhou muito com isso, o que agradece penhoradamente ao
ilustre literato, que é também versejador.”
Como reconhece Carlos Dias, o nosso Prata da melhor lei não
cometia apenas poemas licenciosos, mas também os fazia líricos, e mesmo
elegíacos, se fosse o caso. Foi um homem de seu tempo, e por isso mesmo em seus
versos tratou de fatos da política partidária e de pessoas e fatos da
comunidade altoense. Em todos ou quase todos lhes injetou uma pitada de
humorismo e até mesmo de condimento epigramático.
No aludido livro, consta uma “peleja” entre os repentista
Nonato Costa e Raimundo Nonato, enaltecendo o talento de Zé da Prata, em versos
que lhe “teceram inspirados elogios em sextilhas decassílabas polidas,
homenageando o poeta altoense”.
O cordelista Guaipuan Vieira, filho do grande poeta popular
Hermes Vieira, um dos melhores do Piauí, escreveu uma suposta “Peleja de Zé da
Prata com Sola Crua”, a exemplo do que Firmino Teixeira do Amaral fizera com
Cego Aderaldo e Zé Pretinho. Creio que a disputa do repente entre os dois
cantadores deve ter acontecido, porém em outro versejar, do qual não ficou
registro completo, mas apenas eventuais fragmentos, que Guaipuan deve ter
aproveitado em seu cordel.
O nosso poeta, assim como Jesus e Sócrates em relação aos
seus ensinamentos, não escrevia os seus versos, mas os dizia ao sabor do
improviso e de acontecimentos ou provocações, que lhe suscitavam o poetar, de
modo que muitos de seus versos se perderam com o passar do tempo, só restando
aqueles mais notáveis, que ficaram na memória de algumas pessoas, e que depois
foram recolhidos pelos pesquisadores.
Nos seus versos satíricos, e principalmente nos licenciosos e
mesmo fesceninos, o poeta tratava de assuntos da sexualidade e algumas vezes
descrevia o próprio ato em si ou a genitália masculina ou feminina, porém de um
modo muito criativo, com metáforas jocosas e inusitadas, que nos provocam a
admiração e o riso.
Nesses versos a sua inventividade atinge uma voltagem tão
alta, tão criativa, que eu lhes vislumbro lampejos de genialidade. Ousaria
mesmo dizer, que os acho tão mais geniais, quanto mais fesceninos ou
licenciosos. Félix Aires chegou a comentar em sua Antologia de sonetos
piauienses (1972) que ele era “fértil e original, porém licencioso” e que se
“não fora isso” teria mais “versos legitimados nas antologias, coisa
publicável”. Ao contrário do notável antologista, acho que quanto mais
licenciosos, satíricos e fesceninos, mais os seus versos são antológicos e mais
devem ser publicados.
Exigir-se que Zé Prata não fosse licencioso ou satírico seria
a mesma coisa que se desejar que Beethoven não fosse uma monumental e suntuosa
catedral da harmonia e da música.
Quando eu estava com esta crônica de crítica literária já
perto do fim, enviei um WhatsApp para o Carlos Dias lhe comunicando isso, e
dizendo que se fôssemos disputar uma peleja no repente ele seria um carcará e
eu um mero pinto pelebreu, ao que ele me retrucou com os seguintes versos:
Nobre amigo Elmar Carvalho,
Não mangue do escravo seu:
Pois de um carcará malvado
Tá muito longe meu eu;
Tô mais pra pinto pelado,
Que a raposa não comeu.
Já o ilustre magistrado,
Enorme e capacitado
Na chinela me escondeu.
Incontinenti mandei a seguinte resposta ao meu “inimigo”:
Não passo de um esboço
Diante de sua alta estatura.
Você é um gigante Golias
e eu, de David, miniatura.
Você é um grande criador
E eu minúscula criatura.
Nesse tipo de peleja, vence o cantador ou repentista que mais se menoscabar ou se diminuir e mais exaltar ou enaltecer as virtudes do adversário. Fosse eu juiz desta causa ou justa de cantoria, daria a disputa como empatada, embora meu oponente tenha jogado melhor. Salvo melhor juízo, já que a decisão é sujeita a duplo grau de jurisdição.
Tou mais para pinto pelado
ResponderExcluirQue a raposa não comeu..
..
.
.
Gostei muito desse texto !
ResponderExcluirObrigado.
ResponderExcluirExcelente, excelente...
ResponderExcluirGostei deste texto. Maravilha, amigo Elmar.
ResponderExcluirCaro Alcione,
ResponderExcluirFico contente com as suas generosas palavras.
Admirável, meu caro. A história do Zé da Prata é a história de muitos portas populares que não deixaram consignado no papel a sua verve criativa. Quanto a disputa final, gostaria de ver a sua continuação em pelo menos mais quarenta estrofes para pode chegar a um verídico. Muito legal a sua crônica feita no estilo galhofeiro( o corretor acusou aqui um neologismo, mestre) e sempre rico.
ResponderExcluirQuis dizer, poeta, e não porta.
ResponderExcluirNão im-porta. Para os chatos, este poeta bate a porta; com relação a você, bate à porta.
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