Caminhões de latas
Pádua Marques
Romancista, contista e cronista
Se eu tive em tempo de menino uma paixão, essa paixão foram os carros de lata. Nunca existiram brinquedos mais bonitos, cativantes e com cara de coisa grande do que os carros de lata que eu de início ganhei ou mandei fazer e depois que aprendi a fazer, não larguei mais. Cheguei a ser um dos maiores construtores de meu tempo de menino e da minha rua de caminhões, carros de passeio, tratores e até ônibus feitos de lata.
Os meninos de meu tempo, desde a rua Sebastião Bastos, Madeira Brandão, Marechal Pires Ferreira e redondezas, da parte de cima do bairro de Fátima, bom que se diga. Essa divisão territorial veio anos depois após uma rusga pelo domínio no mês de maio, mês das procissões de Nossa Senhora de Fátima, entre os seguidores da velha beata dona Onorata. Então passou a se chamar bairro São Benedito.
Nós aproveitávamos de um tudo nas folgas do Grupo Escolar Epaminondas Castelo Branco pra fazer nossos carros de lata. E cada um menino queria fazer melhor do que o outro a imitação de um ônibus, um automóvel, um caminhão de carga com a carroceria perfeita, os detalhes de retrovisor, faróis, os parachoques.
Mas essa minha paixão pelos carros de lata veio de longe, de mais de baixo, ainda quando a gente morava na Baixinha, parte do bairro de Fátima entre o estádio Petrônio Portela, antes International, e a rua Tabajara, indo pra beira da linha de ferro no rumo do Cantagalo, onde morava meu amigo de grupo escolar, o Aloísio Rodrigues da Silva, filho de seu Bendito Bonito. Nós éramos alunos de dona Sônia Alelaf e de dona Teresa Barros.
Tinha um menino, já chegando a rapazinho, o Nilson, irmão do Orismar, filhos de seu Domingos Tachinha, moradores da Armando Burlamaque, em frente da casa de Pedro Agostinho, que fazia os carros de lata mais perfeitos que eu conheci em Parnaíba. Fazia carros grandes, médios e pequenos, de todos os modelos, de bom acabamento e pintura. Chegou a fazer até uma lambreta. Meu irmão Luís tinha uma caminhonete preta feita por ele. Eu não me cansava de olhar aquele carro, uma perfeição absoluta!
Quando nos mudamos pra parte de cima do bairro de Fátima eu e meu irmão Zezinho começamos a fazer nossos próprios carros. Todo menino de meu tempo tinha um carro feito de lata. Carro pra ser companheiro de brincadeiras, de andar com a gente pra cima e pra baixo, acompanhar nos recados da casa, ir comprar sabão, farinha, um mercado de azeite de coco, qualquer coisa na quitanda de seu Zé Maria. E lá ia o menino puxando o carro pelo cordão.
E a gente nos fins de semana saía a juntar latas de óleo, lata de cera, de querosene, de tinta, fosse o que fosse pra fazer mais um carro. Juntava as ferramentas, os pregos e a madeira que seriam as coberturas e os eixos, pra parte de cima e da frente dos carros de lata. Mas tinha também a dificuldade nalgumas linhas de produção: como encontrar os arcos de barril que seriam empregados nas molas. E falando sobre dificuldade nas ferramentas, uma delas era tirar escondido de minha mãe sua tesoura grande, empregada no corte das peças.
Se a gente conseguisse um trocado aqui ou ali era pra comprar pregos, pagar alguém que vendia o arco de barril das molas. Geralmente esses arcos vinham amarrando as cargas dos armazéns de lá de dentro da rua. Depois era a tinta da pintura, alguma peça, um acessório mais interessante, esse que causaria a diferença e provocaria a admiração dos outros meninos de meu tempo.
Estudado o modelo do carro, o tamanho e alguns detalhes da lataria, agora era cortar e ir montando. Se houvesse empenho mesmo, dentro de uma semana estaria pronto e desfilando na rua de areia fofa e fazendo inveja nos concorrentes. Depois era só sair brincando pra tudo quanto era lado. E aquele brinquedo todo feito com dedicação e capricho, desde o início, corria as ruas e os quarteirões.
E aquele cheiro de tinta nova na madeira, a imponência do modelo, a perfeição dos pneus de madeira, os detalhes dos bancos, as molas que inventamos com maior balanço dos eixos, os faróis feitos com tampas de tubo de pasta de dentes ou tampas de vidro de remédios, o balanço das molas, tudo aquilo nos lembrava um carro de verdade.
E a gente largava a construir cidades com suas casas, ruas, pontes, rios, fábricas, terrenos, estradas. E a brincadeira até que de vez em quando iria atrair as meninas com suas bonecas de pano ou de plástico. Eu cheguei a ter ônibus Fenemê cara chata, caminhão Chevrolet, ônibus do Marimbá. Fiz um carro tipo pau de arara de seu Roldão que ia pra Buriti dos Lopes, caminhonetes da Ford. E no final de semana todos esses carros de lata vinham pra fora, saídos de uma despensa velha abandonada. Daquele momento em diante o mundo dos meninos do meu tempo seria outro.
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