domingo, 12 de junho de 2022

Seleta Piauiense - Hermes Vieira

 


O lobisomem

 

Hermes Vieira (1911 - 2000)

 

Vosmincê, doutô, conhece,

Ou já viu falá no nome

Desse bicho que aparece

Nos camim quando anoitece,

Qui se chama lubisomem?

 

Esse bicho qui é chamado

Desse nome e fáiz pavô,

Muntos conta qué virado

De cumpade amancebado

Cum cumade, seu dotô.

 

E quando ele vai virá

O dimõi nesse figura,

Pra ninguém num bisservá,

Sai de casa, divagá,

Quinta-fêra, noite iscura.

 

Vai dereito a um ispojêro

Dos mais perto qui tivé;

Tira a roupa e cai ligêro

Si rolando no ispojêro,

Dando isturro e pontapé.

 

Quando o bicho si alevanta

Num tem nada mais de gente,

E a fiúra nele é tanta

Qu’inté mermo ele s’ispanta

De si vê tão deferente.

 

Diferença d’assombrá,

Apois tem, nesse momento,

Unhas grande de jaguá,

Dentadura de guará

E a zureia de jumento.

 

Tem seu corpo de barrão

E de bode a cabelaça;

Seus dois ói são dois tição,

Mode vê, na escuridão,

Os lugá puronde passa.

 

E assim sai dali trotando,

Sacudindo a cabelêra,

E puronde vai passando,

Dele a gente vai suntando

Risuído e tinidêra.

 

Nesse trote, qui num sôa,

Ele sente sede e fome;

E pegando uma pessoa,

Qui pra ele a carne é boa,

Mata e sangra, rasga e come.

 

Quando passa nas fazenda,

Pr’ele avança a cachorrama,

E no mei dessa contenda,

Todos qué fazê merenda

Do bichão do zói de chama.

 

Mais cum’é de muita sorte,

É valente e tem capricho,

Vence tudo e segue forte.

(Mais, si arguém dé nele um corte,

Logo dêxa de sê bicho).

 

Desse jeito, ele vai indo

Assombrando, de hora im hora,

Os cristão qui fica uvindo

O barui dele seguindo

Noite adentro, istrada afora.

 

Mais porém quando ele nota

Cantá galo nos pulêro,

Volta o corpo e sai da rota,

E apressado ele si bota

Novamente pru ispojêro.

 

E ali chega de repente

Faiscando o zói de brasa,

E rolando novamente,

Disfáiz tudo e vira gente,

Veste a rôpa e vai pra casa.

Fonte: Livro Nordeste - poemas, sem indicação de data e editora.

2 comentários:

  1. Adorei, pois se escreve do jeitinho que se falava, lembrei das estórias de criança, todos gostavam de estórias de assombração, ouvíamos sem dar um pio, todos juntos e se enrolando nos lençóis...😳

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  2. Mui bela e real descrição desse "monstro" que apavorou minha infância e ainda hoje causa assombro em muita gente de nossa cidade.

    E Hermes o faz com as cores e falares típicos de nossa gente sertaneja, temperando ainda mais o já saboroso imaginário popular sertanejo.

    Bravíssimo!!

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