Charge da autoria de Gervásio Castro |
CEGO BENTO
Elmar Carvalho
Desde 1975, quando fui morar em
Parnaíba, passei a ver o cego Bento (Bento Araújo da Cunha, *1921 - +2013) perambulando pela cidade, com seus
acompanhantes, um dos quais, seu irmão, também mergulhado nas densas trevas da
cegueira, a encher os bares com a música de sua sanfona. Compunham um legítimo
conjunto do chamado forró “pé-de-serra”. Após a apresentação, o ouvinte dava ao
sanfoneiro o dinheiro de que podia dispor, quase sempre muito escasso. Pouco ou
nada sabia da história do cego.
A minha série de poemas titulada
“PoeMitos da Parnaíba”, em que canto os “mitos” dessa amada e aprazível cidade,
foi elaborada aos poucos, e aos poucos foi publicada no jornal Inovação,
periódico valente, de saudosa memória, que não poupava o lombo dos pulhas,
salafrários e corruptos. Cada número trazia dois ou três “poemitos”, o
Reginaldo Costa sempre me cobrando novos poemas, mas eu já me sentia esgotado
na inspiração, pois caracterizar ou caricaturar uma pessoa, no que ela tem de
pungente ou anedótico, em poucos versos, é uma tarefa difícil e ingrata. Só
anos após a desativação do brioso pasquim é que encerrei a série, creio que com
chave de ouro, ao consagrar o último poema ao cego Bento. Tempos depois,
estando eu numa barraca, ao pé do mar, na praia de Atalaia, a que prefiro o
nome poético e sugestivo de Amarração – de amar, amarrar-se, amar de coração –
chegou o cego trazendo a música na caixa e no fole de sua sanfona.
Identifiquei-me como o autor do poema que lhe endereçara, e lhe fiz um
meteórico discurso. O cego emocionou-se, agradeceu-me, e lamentou não haver
sido gravada a minha, talvez importuna e inoportuna, peroração.
Alguns meses atrás recebo uma
correspondência sua, na qual está contada, em síntese, a sua vida de pobre e de
amante inveterado da música, desde criancinha, em palavras simples, mas claras
e precisas. Nasceu para a vida e para a música em 17 de setembro de 1921, no
lugar Boa Vista, município de Luís Correia. Casou-se no dia 31 de janeiro de
1951, tendo gerado doze filhos. Aos dez anos já tocava uma gaita de boca, mais
conhecida em nosso meio como realejo, enquanto seu irmão Bernardo balançava um
badalo, mas afirmando estar a tocar um cavaquinho, o sonho e o desejo se
impondo à crua realidade de percalços e pobreza. Seu irmão Benedito batia com o
“cabeção” em um tamborete e fazia retinir umas argolas, como se fossem um
maracá. Foi assim, com essa improvisada orquestra de crianças irmãs, que se
iniciou a bela trajetória musical do cego Bento.
Em 1935, quando tinha 14 anos,
seu pai foi morar no lugar Gameleira, onde aprendeu a executar uma pequena
harmônica de quatro baixos. Seu irmão Bernardo tocava um cavaquinho, porém sem
saber afiná-lo, apenas fazia barulho, mais servindo de percussão do que de
acompanhamento, o amor à música muito maior do que a sua habilidade de criança.
Benedito, o outro irmão, empunhava o reco-reco. Surgiram os contratos, que
possibilitaram a melhora da orquestra. Às vezes, percorriam de sete a oito
léguas (multipliquem-se esses números por seis, para se encontrar a
quilometragem), a pé, como uma espécie de menestréis de antigamente, para
tocarem numa festa.
A partir de 1940, o cego Bento
passou a residir na cidade de Parnaíba. O seu conjunto musical já possuía uma
sanfona nova, bombo, tamborim, banjo e clarineta. Para se tornar mais
conhecido, começou a fazer festas. Os contratos foram, gradativamente, aumentando.
Com isso, sua responsabilidade artística foi crescendo, bem como a sua
autocrítica, pelo que passou a sentir, em face talvez dos modismos, que o seu
repertório já não estava agradando. Por esse motivo, resolveu ser aluno do
maestro Raimundo Ribeiro da Silva, mais conhecido como Raimundo Tropa. As aulas
lhe foram muito úteis, porquanto passou a conhecer, como ele mesmo diz,
“tonalidade do instrumento, escala cromática, escala natural e mais algumas
coisas”. Aprendeu a tocar samba, marcha, rumba, fox, xote e baião, músicas que,
na época, caíam mais no gosto popular. Cego Bento crescia na competência e na
fama.
Nas comemorações do centenário de
Parnaíba, ocorrido em 1944, em plena e majestosa praça da Graça de então, a sua
orquestra tocou, para deleite do povo, durante nove noites. Foi, talvez, o
ápice de sua glória e consagração. No clube Sinorion, durante muitos anos,
tocava, no período de carnaval, as encantadoras e belas músicas da época. Era o
carnaval gostoso, alegre e típico do Zé Pereira, e não os arremedos e
macaqueamentos, hoje tão em voga, do pomposo e “cinematográfico” carnaval
carioca. Tocou nos principais clubes da cidade, entre eles o Fluminense,
Ferroviário, do Trabalhador, Guarani, Coroa. Animou bailes matutos no
aristocrático Cassino 24 de Janeiro. Apresentou-se nas boates das irmãs Justina
e Luzia Chaves. Eram os áureos tempos do “Sonho Azul”, dos “bailes azuis” e de
outras cores. Animou os reboliços dançantes das boates Madalena (sem Madalenas
arrependidas), QG (quartel-general de estripulias estrambóticas e eróticas),
Cabeleira, Lulu, Ninho do Xexéu (onde muitos se aninharam em lúdicos e sensuais
aconchegos), atuando também na Munguba e no Gordo.
No dia 27 de julho de 1974, cego
Bento desativou sua orquestra, e formou o “Trio Igaraçu”, constituído por ele
próprio, na sanfona, pelo seu irmão Luís, no pandeiro, e Nonato Gordo, no
cavaquinho. Nonato, que fora membro da banda municipal, faleceu, sendo
substituído por outro instrumentista. O “Trio Igaraçu” ainda hoje torna mais
alegre a praia de Amarração, provocando amarrações no embalo da música e no
ritmo dos corações.
Cego Bento, em 17 de setembro de
2002, completou 81 anos de idade, mas, ao contrário do que ele diz na carta,
não o fim da vida nem da carreira. Todavia, como ele afirma na carta, e eu já
afirmara em versos, pode dizer com todas as letras: “Posso dizer, sou uma
tradição, sou uma relíquia, sou folclore, sou museu desta cidade”. E eu somente
acrescentaria: um museu muito vivo, muito vivo e alegre, e não triste e
fossilizado como certos museus de glórias vãs.
Não podendo, como gostaria, de
estampá-los em placa de bronze, estampo nas placas da eternidade estes versos
que dediquei ao imortal cego Bento: “Não morrerás, / meu quimérico e homérico
cego. / Um mito não morre: / um mito se encanta e permanece.”
Segue meu poema sobre o Cego Bento, na íntegra:
Cego Bento
Elmar Carvalho
Não morrerás,
meu quimérico e homérico cego.
Um mito não morre:
um mito se encanta e permanece.
Teus dois percursionistas
são dois anjos da guarda
de asas dissimuladas.
Um te abriga com a sombra
de seus olhos também sem luz.
O outro é tua estrela guia,
que te conduz em tua noite sem
dia,
pelas trevas espessas de teus
olhos,
como um Virgílio da nova
mitologia.
Não morrerás,
não por seres Bento,
mas por teu talento.
A música escorre de teus dedos,
saltita sobre os teclados,
palpita e resfolega no fole,
cabriola no molejo moleque
do leque da sanfona,
evola-se pelos ares,
remexe as ondas dos mares,
sacoleja as folhas dos palmares,
se quebra e se requebra pelos
bares
e remelexe no chamego e aconchego
dos pares.
Não morrerás, cego Bento.
Você o tornou Imortal.
ResponderExcluirMeu quimerico é homérico cego
ResponderExcluirObrigado, meus amigos.
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