DOIDO POR CARROS
Elmar Carvalho
Sempre o vejo, perto do semáforo
do cruzamento das avenidas Petrônio Portella e Duque de Caxias. Vem de longe ou
vai para longe, a descer ou a subir a ladeira do Parque da Cidade. Caminha
puxando o seu minúsculo carro de brinquedo. Mas não é nenhuma criança. Deve ter
mais de trinta anos. É o que o vulgo convencionou chamar de doidinho.
Todos os dias fica, pontualmente,
no semáforo, como se estivesse a cumprir uma jornada de trabalho, a passar sua
esfarrapada flanela nos carros, que esperam a abertura do sinal verde. É como
se fosse um ritual; contorna o veículo a lhe esfregar o velho trapo vermelho.
Parece estar cumprindo uma obrigação. Não espera receber moedas, pois nunca as
solicita. Se algum motorista lhe oferta alguma, não lhe dá a mínima
importância, e a guarda displicentemente no bolso, quase como se estivesse a
fazer um favor a quem a deu.
Soube que uma pessoa bondosa lhe
deu um carrinho novo de presente. Parece não ter dado importância ao mimo, uma
vez que continuou a puxar o seu diminuto e velho brinquedo. Talvez tenha ficado
com pena de deixá-lo esquecido, no canto, como se costumava dizer antigamente,
por causa de um novo amor.
Poucos dias atrás, o vi a puxar
por um cordão um de seus velhos carrinhos. Era um caminhão, com duas
desproporcionalmente grandes rodas dianteiras, sem nenhuma na parte de trás,
que lhe faziam empinar a frente, como um avião sem asas e sem voo. Vi quando
ele fez o brinquedo dar o chamado “cavalo de pau”, a rodopiar sobre si mesmo.
Admirei-me dessa sua atitude,
pois ele é muito circunspecto, e até mesmo a usar um brinquedo não gosta de
brincadeira, e não sorri. Aparenta viver hermeticamente fechado em seu mundo de
silêncio e demência, porquanto não liga a mínima para os passageiros, mas
apenas cumpre religiosamente a sua autoimposta tarefa de “abanar” os carros com
a sua escassa tira de flanela. Tudo indica que vive num mundo só dele.
Em sua mansa loucura, nunca o vi
furioso ou revoltado, mas apenas a cumprir, como um autômato, o mister que
impôs a si mesmo. Mas me contaram que outro dia ele se revoltou contra uma
ambulância. Ficou bastante agitado, e em lugar de seus afagos flanelísticos,
quis espancar o carro.
Embora sem nenhuma vocação
detetivesca a la Sherlock Holmes, e sem o adjutório do bom e elementar caro
Watson, deduzi que, numa de suas crises, pois até os chamados sãos têm as suas,
alguma ambulância deve tê-lo levado para longe de seu rebanho de carros, para
confiná-lo em algum hospício, onde lhe devem ter aplicado alguma dolorosa
injeção medicamentosa, ou onde lhe podem ter ministrado alguma dosagem/voltagem
de choque elétrico, que, segundo ouvi um psiquiatra dizer, ainda tem a sua
eficácia, não se tornando, ainda, de todo obsoleto e banido do mundo da
medicina.
Oxalá, tenha sido excluído das
práticas de tortura, que não mais deveriam existir; que, aliás, nunca deveriam
ter existido.
11 de agosto de 2010
Olhar para o "invisível" que, em sua invisibilidade, chama a atenção de um observador com o olhar da alma. Há muitos, perambulando entre trevas e luz, vidas quebradas esperando chamar a atenção de um observador aguçado.
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