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O Último Contador-de-Urubus
Fabrício Carvalho Amorim Leite*
O macaco-guariba voltou a zombar das visagens bem aqui perto de casa. De um jeito ou de outro, sô, o mundo anda esquisito.
— Vê aquele babaçu grande? — pigarreou o Contador-de-urubus, fincando o cajado ensebado com cera de carnaúba no chão torrado.
— As guaribas, agora, têm um certo, sô. Quando nos veem, botam duas palhas da palmeira na frente do corpo, como se tivessem vergonha.
Vi ali uma espécie em extinção. E não era o macaco-guariba, que já é, por si, uma memória vagante de um tempo que se foi. Falo daquele homem.
Colonizou essas bandas antes mesmo de existir, quando ainda nem no ovário da mãe estava, mas já carregava o destino traçado.
O avô J. Amorim, sim, foi quem desbravou essas terras, recebendo do governo o prêmio de coragem e astúcia. Conquista a perder de vista — ou melhor, até onde a vista topasse com outro colono. O resto era dele, e de mais ninguém.
Conversamos diante dos grandes carnaubais. Ao fundo, a mata grande — ou o que restava dela — se espalhava numa mistura de sertão, babaçuais e ipês-amarelos floridos.
O cinza. O amarelo dos ipês. O verde escorrendo sobre o vermelho do sol poente.
— Hoje em dia, num se acha mais vaqueiro que preste, sô… — praguejou o velho, ajeitando o chapéu puído na cabeça.
Os marruás se foram.
Cavalos catingueiros? Só prestam para a exposição dos ricos e para desfile no dia do vaqueiro, pra tirar foto com prefeito.
Mascou algo na boca que parecia fumo e cuspiu adiante.
Ao longe, um carro de som passou devagar na estrada, com o alto-falante anunciando novidades do supermercado da cidade:
— "Promoção de carne argentina e calabresa!"
O velho suspirou.
— Agora é tudo isso aí. Antes, era carne de boi agreste, farinha amarela, cachaça boa. Hoje, é comida de plástico, cerveja aguada e gado do Goiás — para ele, todo gado vinha de lá.
Fez um gesto decidido, como quem tentasse abraçar o mundo, e bufou:
— E tem mais, viu? Num encontro um cristão que preste pra me ajudar na lida da roça. Tudo largado!
Pausa. O silêncio só era cortado pelos berros dos macacos-guaribas lá na frente.
Ele olhou para mim e cuspiu de lado, ajeitando a perna ruim.
— Ah… se eu num tivesse com meus noventa e dois anos, um oio cego de um coice de burro e essa perna mole desde que caí de moto faz seis meses…
O céu fechou cedo. Trovões estouravam nas bandas da mata das guaribas. No Nordeste, escuro de chuva é esperança. Ainda bem.
O Contador-de-urubus ergueu os olhos para uma árvore, a uns cem metros da varanda, e disse:
— Tá vendo aquele urubu? Urubu sozinho… é sinal dos tempos. Só vive em bando…
Fez o sinal da cruz e virou-se para a estrada poeirenta. Mas, dessa vez, não cuspiu perto dos pés.
Parou de repente e apontou com o queixo:
— Olha lá aquele monte de pedras na boca da encruzilhada… Vão fazer um tar de calçamento.
O guverno quer avançar nas quintas do vô…
Silêncio. Olhamos juntos o amontoado de pedras. O progresso chegando.
Eu esperava um palavrão. Um resmungo raivoso. Mas, em vez disso, vi uma faísca no olhar do velho.
Ele coçou a aba do chapéu, pensativo.
— Talvez num seja tão ruim assim… — murmurou, quase para si mesmo.
A frase se perdeu no vento. Ele franziu a testa, como se estranhasse as próprias palavras.
Cuspiu de lado, reequilibrando-se na bengala, e depois resmungou leve:
— Mas praga de urubu magro num derruba cavalo gordo, né? Quem tem, tem. Quem num tem, que se vire.
Suspirou fundo, tanto que as costelas se espicharam. Olhar de quem já viu muito.
E ficou assim, por um instante, quieto, como se ouvisse vozes ancestrais que só ele entendia.
Então, sem pressa, caminhou devagar até o oratório da velha casa. Ficamos ali, em silêncio, entre o cheiro de vela e madeira antiga.
A noite desabou sem correria, trazendo um vento frio que fazia as sombras sacudirem no piso.
O urubu, antes imóvel na árvore morta, ergueu voo e virou breu, sem deixar rastro.
Ou… como ele pressagiou… “augurando outra casa. ”
E foi a única vez que o Contador-de-urubus não ficou naquela sagrada hora, no alpendre, contando com os olhos os urubus se aninharem no velho ipê – já branco de tanto tempo e de tantos senhores.
Apenas repetiu, baixo, como quem fala com a chuva:
— Sinal dos tempos, sô… sinal dos tempos.
Foi então que compreendi.
Aquele era o último de sua espécie.
Março, 2025.
*Cronista e contista.
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