Fonte: Google
Sábio de Botequim
Por Fabrício Carvalho Amorim Leite
Ali está ele, pontual em seu ritual matinal: seis
e meia, latinha de cerveja em punho, barriguinha distinta, camisa de botão
(três abertos, às vezes mais), bermuda de sarja, sapatinho de couro bem vivido.
Cruza a rua em estado de levitação. Eu, amargo de
sono e sem café, disparo três buzinas de domínio: pi, biii, PIIIII.
Ele, naturalmente, me ignora. Anestesiado. A
latinha é quem dá as ordens: se o peso dela pende para a direita, é para lá que
ele vai; caso contrário, segue o fluxo. Não um carro ansioso, a sessenta por
hora, com uma tonelada de urgência sobre rodas.
“É um
boêmio, confrade. Deixa o homem em paz”, sussurra a consciência, em tom de quem
já se rendeu ao encanto dos que vivem na contracorrente.
Dias desses, vencido o mau humor, resolvi comprar
umas cervejinhas no bar do homem-latinha. Lugar apertado, chão grudento, roda
de boêmia bem-disposta. Cada um no seu trono de plástico, imperando sobre a
própria embriaguez.
E ali, na sombra do bar, entre taças suadas e
zunzunzuns, vi meu pai refletido em Pessoa.
Naquela roda, sorria para as paredes como se
fossem amigos de uma remota genealogia de boêmios. Contava suas parábolas com
olhos que nem a luz opaca do balcão conseguia apagar.
No meio da conversa banal, ele se sobressaía. Era
cultura entre goles, inteligência entre garrafas. Um sábio de botequim. O bar
era seu auditório, e os ouvintes, aplicados alunos de uma vida bem vivida, ou,
ao menos, bem fabulada.
Dava suas lições ao garçom como quem entrega uma
receita secreta:
— Sirva assim, ó... por este lado. Sem bater na
garrafa, senão ela congela.
Oferecia, com discrição, uma nota dobrada ao
churrasqueiro, com ares de Governador da carne:
— Escolha os melhores nacos, amigo — dizia.
— Sim, Doutor — respondia ele, já com a pinça na
mão e respeito no gesto.
Ele era isso: diplomata do balcão, embaixador da
cerveja gelada, conselheiro informal do boteco. E era ouvido, estimado. Podia
parecer ambíguo quando a cerveja chegava choca ou quente, mas, pensando bem,
era coerente até nisso. Um mestre cervejeiro formado nos botequins das esquinas
não merecia ser tratado com menos respeito.
Aproximei-me do homem-latinha. Ele me olhou. A
frieza da lata cortou minhas entranhas. Senti que seria tragado. Havia uma
força naquele olhar, algo que me puxava para dentro de um lugar sem nome. Um
desassossego, como quem se reconhece no fundo do copo.
Balancei tanto o copo que ele fez ondas. Brindei
com um aceno vazio e mergulhei na golada funda. De cabeça solta sobre a mesa,
com o copo ainda nas mãos, vi bolhas brancas e douradas, cobertas por uma
espuma limpa que resistia, bravamente, ao balcão imundo.
Cruzei o Atlântico levado por Bernardo Soares, o
mais lúcido e silencioso de Pessoa, nos dias em que eu ainda não compreendia o
Sábio de Botequim. E falhei. Reconheço que falhei. Era lúcido e triste como um
dia frio, como um Narciso cego.
Tornei a procurar meu pai. Vasculhei o banheiro,
espiei sob o balcão. Fracassei — outra vez.
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