segunda-feira, 10 de maio de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO

Elmar Carvalho




10 de maio

FLAGRANTES DA NATUREZA

Hoje cedo, perto da cidade de Demerval Lobão, avistei um pequeno vira-lata, atravessando a estrada, com muito esforço, em verdadeiro estoicismo, a que talvez tenha se habituado, diante do inelutável de sua tragédia individual. Não movimentava as patas traseiras, e tinha que arrastá-las na aspereza de lixa do asfalto. Diminuí a velocidade do carro, para que ele pudesse concluir a penosa travessia da melhor maneira possível. Muito provavelmente a sua deficiência foi provocada por algum veículo ou por alguma paulada ou pedrada de algum brutal representante da raça humana. Acostumado a correr e a saltar em sua canina agilidade, repentinamente sofreu o golpe que agora lhe obrigava a arrastar as patas inválidas, em esforço extraordinário dos membros anteriores, em sua luta solitária pela sobrevivência, em busca de alimentos ou na fuga de eventual e inesperado predador. Comovi-me profundamente com a cena e ainda estou triste. Como um contraponto alegre, narro dois outros flagrantes de minhas viagens. Outro dia, vi uma cobra coral atravessando o asfalto. Em lugar de acelerar, para esmagá-la, como muitos fariam, fiz exatamente o contrário. Desacelerei o carro, para melhor vê-la elegante e belamente mover-se, como viva, colorida e ondulante fita, filha das matas. Fiz isso porque uma cobra só ataca quando se sente ameaçada. Fiz isso porque ela não tem nenhuma culpa do veneno que tem. É uma arma natural que lhe foi dada, sem que ela tenha pedido. Mas, em contrapartida, o Criador não lhe deu asas nem pernas, e ela tem que se arrastar, sobre areias e pedregulhos, na luta pela vida. Vi também, outro dia, um arco-íris formar uma espécie de portal multicolorido sobre o crepe lutuoso do asfalto. Parecia, prenhe de lendas e mistérios, um estandarte a simbolizar a esperança de um mundo melhor, de um mundo mais justo e mais fraterno, onde os cães abandonados não mais precisem arrastar suas pernas paralíticas, por causa da insanidade do mundo dos homens.

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