Cunha e Silva Filho
Sempre
que um escritor de ficção se defronta com um entrevistador,
este geralmente um jornalista literário ou cultural ou até mesmo um
ficcionista também, pessoalmente ou numa entrevista por telefone,
uma das questões mais comuns se encaminha para a discussão algo
bizantina de um tópico que me parece nunca desejar ser tomado na sua
profundidade de jogo dialético.
O
jornalista, a certa altura da conversa lança , orientado por um
número de perguntas listadas em seu questionário previamente
organizado, a seguinte pergunta: “O seu livro recentemente lançado
é uma ficção ou nele a matéria recolhida e pesquisada se
fundamenta mais na realidade?
O
entrevistado pára um pouco, reflete, organiza o pensamento e um
pouco desajeitado, com ar de quem não é dono da verdade, por fim
declara algum conceito do que entende da pergunta proposta, sem antes
ter consciência de que um, dois ou mais caminhos teria que escolher
para desenvolver seu raciocínio da forma mais breve possível,
uma vez que o contexto ali não lhe daria tanto tempo para longas
digressões teóricas ou mesmo acadêmicas. “Na verdade, na
composição desse livro comecei por fazer um levantamento onde o
peso dos dados referenciais históricos, contra minha vontade, tomou
logo vulto, o que me deixou encalacrado na direção que, a
princípio, traçara para a elaboração da obra. Não sendo eu um
historiador mas apenas um leitor da História, isso me deixou,
segundo assinalei, num dilema de difícil solução, uma vez que a
minha intenção primeira era dar prioridade aos dados ficcionais, ou
seja, criar uma história, personagens, um enredo(se possível), um
tempo e espaço históricos e uma linguagem que procurasse ao máximo
fugir do jornalismo-reportagem ou de um tratado de História.
Este
desvio a que me vi compelido a fazer foi o que salvou o meu romance
de uma rotulação híbrida, meio ficção, meio História.Quer
dizer, na minha ficção, misturando dois campos distintos de uso da
linguagem, salvou-me aquilo que o relato histórico não sabe
administrar porque se vê esgotado na coleta da pesquisa exaustiva ,
quer sobre figuras reais, quer sobre esclarecimentos de certos pontos
controvertidos com que se depara o historiador. Nesse vazios é que
entrou a minha capacidade de fabulação, de penetração no que
poderia ter acontecido da aventura humana de um determinado período
histórico no qual sombras de entendimentos somente se mostram
permeáveis pela força ficcional.
O
nó da questão se põe nestes termos: o de privilegiar a linguagem
narrativa, objetivo principal de quem pretende fazer literatura. Na
linguagem literária a matéria da vida se constrói pela deformação
mimética de concepção aristotélica. Trabalha-se a linguagem no
domínio da realidade possível, do verossímil ou do fantástico ou
maravilhoso, cujo produto se torna mais estético quanto maior
potencial de talento ou vocação revela o autor no tratamento
exigido pela forma artística por ele alcançada.
O
entrevistador, talvez, insatisfeito com o testemunho do escritor, lhe
faz notar que em outras obra do escritor considerada por este de
ficção continha igualmente elementos do universo da História do e,
no entanto, tinha sido rotulada de romance.
O
entrevistado então lhe acrescentou que um tipo de narrativa se
distingue de um mero relato ou ensaio histórico na medida em que
pode colocar um “questão central” não respondida pelo concurso
da História. Ou como faz o escritor espanhol Javier Cercas:(1)
elabora sua obra na confluência da história e da ficção “... em
todo romance, a pergunta central fica sem resposta, o importante é a
investigação”, conclui ele. Posto que a questão da fronteira
entre História e ficção não deixe de embaralhar os espíritos, o
que, em meu juízo, torna-se decisivo para a classificação em
gênero ficcional seria, repito, a forma intencionalmente de criação
literária que o autor imprime à sua narrativa sem a ausência
daquele elemento diferenciador intrínseco, a linguagem artística.
O
que o entrevistado, em geral enfatiza é o componente essencial na
economia do discurso ficcional, acompanhado de seus múltiplos
recursos retóricos, de seu emprego desprovido da exposição
meramente factual ou empírica que obstaria a refundação de um
mundo à parte, capaz de suscitar a curiosidade e o prazer do
leitor, não para que este se afunde num mundo sem consistência de
vida plena, de verdades artisticamente convincentes, de uma
arquitetura ficcional equilibrada no seu todo mercê da capacidade
técnica e dos poderes de invenção e imaginação do autor. Seria,
dessa maneira, aquele chamado “pacto narrativo”, no qual o leitor
é arrastado ou atraído pelo que uma narrativa lhe oferece como
forma de conhecimento real proveniente da naturalidade de
experiências alegres, tristes, problemáticas, conflituosas e
extraordinárias.
Saber
ficcionalizar - acrescenta o entrevistado - é libertar o
leitor do caos da vida real para um nova visão mais completa e
variegada de perceber o mundo. . Em amplos recortes da
realidade. o ficcionista assume, sem
constrangimentos, a condição de também poder levar o leitor a
partilhar essas imensas possibilidades de ver a existência
de uma perspectiva privilegiada que só a arte pode
propiciar num compromisso em que valores morais e
estéticos se sobreponham sempre à selvageria e à anarquia como
propôs F. Schiller (1759-1805) já na sua época e que tão atual
ainda soa aos nossos ouvidos contemporâneos.
Essas
possibilidades de conhecimento, por via da literatura, só se tornam
patentes quando o leitor se vê ante uma realidade tão fundamente
“real” e até mais totalizadora de uma narrativa enraizada
sob a chama viva da recriação de mundos e vidas, de seres, de
espaços, de paisagens, de tempos habilmente manipulados e sobretudo
costurados com os instrumentos necessários do talento de um criador
que, pela linguagem e para a linguagem recodificada, em termos de
originalidade e estilo literário, daquilo que os formalistas russos
denominaram literariedade,
muitas vezes tem a capacidade de surpreender outros criadores e de
mudar-lhe hábitos e concepções de narrativa, como é exemplo o da
romancista Nathalie Sarraute (1900-1999) que, após a leitura
da famosa obra de Marcel Proust, À
a recherche du temps perdu,
declarara se impossível ver o mundo como o tinha visto ate então,
tal o choque e reação provocados pela obra de Proust. Para ela
Proust representava ‘uma certa ordem de sensação’. Ou seja,
essa visão nova apreendida da ficção proustinana compreendia
‘diversos níveis de consciências’ que, através do escritor,
“procuravam confusamente a sua forma”.
Recordo
que um colega de magistério me confessara há anos que, após a
leitura deGrande
sertão: veredas,
de Guimarães Rosa, sua visão também tanto da vida quanto da arte
lhe causou forte e saudável mudanças de concepções de literatura
no gênero ficcional.
O
entrevistador, que ainda dispunha de algumas perguntas a fazer ao
escritor, resolveu dar por encerrada a entrevista. Contudo, para o
leitor da entrevista ficou bailando no ar uma curiosidade teórica, a
de que cada escritor tenta mostrar seu processo criativo, mas se
percebe que ali deixou escapar o principal que, na minha opinião,
amiúde é posto de lado: o significado epistemológico do que sejam
os mais diversos meios e recursos de que a ficção dispõe na
difícil tarefa da arquitetura da obra. Desses meios e recursos
intuímos alguns, mas não todos em cada
escritor, cujas razões últimas de procedimentos compositivos nunca
são realmente reveladas.
Esse
pulo do gato é escamoteado por vezes e é ele que provoca o silêncio
das palavras. Aquelas razões últimas permeiam esse silêncio e
pausas, assim como sua impossibilidade de se expor, por completo,
ante o fenômeno literário, às verdades que gostaríamos de
conhecer porque, ademais, o silêncio deixa um vazio, provoca dúvidas
e ambiguidades, traços que não podemos negar no fenômeno
literário, pois desvelariam (ou não) o segredo ou o mistério
necessários à permanência da essência da literatura. Cada
escritor guarda para si uma carta na manga.. Só que não a entrega a
ninguém e com ele morre.
NOTAS
(1)
FREITAS, Guilherme. A realidade da ficção. In: O GLOBO, Prosa &
Verso, 26/05/2012, p. 1-2
(2) SCHILLER, f. La educacion estetica del hombre. Trad. de Manuel G. Morente. Terceria edicion. Buenos Aires: ESPASA-CALPE ARGENTINA, S.A., 1945.
(3) BOURNEUF, Roland e OUELLET, Real. O universo do romance. Trad. de José Carlos SEABRA Pereira Coimbra: Livraria Almedina, 1976, p. 286-287.
(2) SCHILLER, f. La educacion estetica del hombre. Trad. de Manuel G. Morente. Terceria edicion. Buenos Aires: ESPASA-CALPE ARGENTINA, S.A., 1945.
(3) BOURNEUF, Roland e OUELLET, Real. O universo do romance. Trad. de José Carlos SEABRA Pereira Coimbra: Livraria Almedina, 1976, p. 286-287.
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