Charge: Gervásio Castro |
Fonte: blog Bitorocara |
10
de outubro Diário Incontínuo
GIULIANO
GEMMA E O VELHO CINE NAZARÉ
Elmar Carvalho
Pela
televisão, soube da morte de Giuliano Gemma, no dia 1º,
terça-feira, perto de Roma, vítima de acidente automobilístico. Na
minha meninice e início de adolescência assisti a alguns de seus
filmes, no velho Cine Nazaré, em Campo Maior. Era ele um dos mais
famosos e atuantes atores da época. Foi um dos ídolos de minha
geração.
Fez
o papel de Ringo em vários filmes. Foi um dos mais célebres
protagonistas do bang-bang italiano, também chamado de faroeste
macarrônico ou spaghetti western. Considerado galã e bom ator, sua
filmografia é extensa. Atuou, entre outros, nos seguintes filmes:
Uma pistola para Ringo, O dólar furado, Dias de vingança, Dias de
ira, O leopardo, Minha lei é matar ou morrer e Maciste l'eroe più
grande del mondo.
O
Cine Nazaré, pertencente ao Sr. Zacarias Gondin Lins Castelo Branco,
ficava ao lado da matriz, hoje Catedral de Santo Antônio do Surubim,
entre as praças Bona Primo e Rui Barbosa. Fui a algumas sessões
levado por meu pai (que também me levou a partidas de futebol e a
espetáculos circenses), quando ainda menino, e sozinho em minha
adolescência.
Havia
um grande anteparo com espelho, que separava o hall de entrada da
sala de exibição propriamente dita. As cadeiras eram de madeira, e
a parte para sentar era móvel, de forma que poderia ficar na
vertical, quando desocupada. Parecia nele ter cadeira cativa a negra
Dodó, esguia e um tanto espigada, descendente de escravos, trazida
de Colinas (MA), segundo consta, pelo padre Benedito Portela; morava
ela na Praça Bona Prima ou em seu entorno.
Como
um Cérbero do bem, guardava-lhe a porta de entrada o senhor Estácio,
pai do historiador padre Cláudio Melo. Só que, enquanto Cérbero
era guardião do Hades, o reino das sombras subterrâneas, o velho
Estácio vigiava a portaria de um paraíso, um Éden cinematográfico;
ao passo que o monstruoso cão infernal fazia festas aos que entravam
e impedia ferozmente a saída, o segundo exigia o bilhete de entrada
e franqueava, com a maior prodigalidade, a saída.
Não
havia ar condicionado, de modo que as várias portas laterais ficavam
abertas, permitindo que o vento circulasse, pelo que o ar não se
tornava viciado. Ademais, existiam grandes ventiladores, que mais
pareciam as hélices de um teco-teco, o que dava certo conforto aos
clientes. O proprietário era quem fazia as propagandas das
películas, fazendo questão de enfatizar pelos alto-falantes, quando
era o caso, de que eram em technicolor. Ele próprio anunciava as
novidades pelas ruas de Campo Maior, com o uso de amplificadoras em
sua Rural Willys vermelha e branca, que eram as cores do Caiçara,
time famoso e valente na época, sobretudo nas vezes em que ele foi
seu presidente. Por essa razão, eu lhe tinha simpatia, e não batia
as bancadas das cadeiras de seu cinema.
Apesar
disso, certa vez em que o Otaviano Furtado do Vale, após dizer que
as coisas não mudavam em Campo Maior, que era sempre a mesma rotina
e o mesmo tédio, pediu-me para dizer um relaxo sobre a propaganda
feita por Zacarias Gondim, eu disse esses versos irreverentes, mas
sem nenhuma maldade, ainda mais porque eu era e sou torcedor do
Caiçara: “Mudam as noites / e mudam os dias / só não muda a voz
/ enfadonha do senhor Zacarias.” Em minha maturidade, saudoso dessa
velha casa de exibição cinematográfica, no meu poema Vida in
Vitro, assim me reportei em versos: “ainda assistes a filmes de
bang-bang / só para sentires a emoção do tempo / em que teu pai te
levava para o reino / encantado e mágico do velho cine nazaré / que
em tua memória ainda remanesce.”
Quando
as velhas fitas de celuloide quebravam, e isso não era fato incomum,
os assistentes, principalmente os mais jovens e mais rebeldes,
movimentavam com certa violência o assento das cadeiras contra o
encosto de modo a produzirem um barulho infernal, além de assobiarem
com estridência. O Sr. Zacarias, quase apoplético, surgia, após
acender as luzes, e passava severa descompostura nos “moleques”.
Mais parecia uma figura egressa da tela de seu cinema. Felizmente, o
projecionista logo emendava a fita, e quando a exibição recomeçava,
como por encanto, tudo voltava ao mais completo silêncio e
normalidade.
No
Cine Nazaré pude assistir a alguns épicos, com temática da
história ou da mitologia greco-romana, alguns protagonizados por
Victor Mature, o fortão da época, mas considerado bom ator.
Giuliano Gemma encarnou, sobretudo, o caubói Ringo, rápido e
certeiro no gatilho. Quando os garotos saíam do cinema, pareciam ter
incorporado o mocinho. O caminhado sutilmente mudava, na imitação
do herói cinematográfico; as mãos se mantinham levemente afastadas
dos quadris, como se a qualquer momento fossem sacar um imaginário
revólver, que parecia pender do coldre.
Outros
atores dessa inesquecível época foram Franco Nero, Anthony Quinn,
Kirk Douglas, Burt Lancaster, Charlton Heston, Charles Bronson. Sim,
quase ia esquecendo, ainda havia Johnny Weissmuller, travestido de
Tarzan, a emitir uns gritos escalafobéticos, a se locomover
dependurado em cipós e a enfrentar crocodilos e bandidos em plena
selva africana. Todos eles encantaram a minha meninice e juventude em
películas admiráveis. Indefectivelmente, na Semana Santa, era
exibida uma velha fita da vida de Jesus, geralmente a Paixão de
Cristo, que assistíamos contritos, tristes, quase como se os fatos
tivessem acabado de acontecer.
Ainda
alcancei o Cine Nazaré em franca prosperidade, com algumas exibições
alcançando lotação plena (ou quase), e depois, com o advento da
televisão, o início de sua derrocada, com a assistência minguando
cada vez mais, até o salão ficar com apenas uma dúzia de
espectadores, e às vezes nem isso. Quando me mudei para Parnaíba,
em junho de 1975, ainda testemunhei o Cine-Teatro Éden em atividade.
Lembro-me
que assisti ao Conde Drácula, protagonizado por Christopher Lee,
nesse afamado cinema. Depois, com a decadência do Éden, foi criado
em Parnaíba o Cine Gazeta, no qual presenciei John Travolta, com sua
dança e rebolados, nos Embalos de Sábado à Noite; Moisés, na pele
ou na figura de Charlton Heston, abrir ao meio o Mar Vermelho, e a
longevidade e a paz serem alcançadas em Shangri-La.
Como
eram diferentes os filmes dessa época. Essa versão do velho e
vampiresco Conde tinha antigas carruagens, misterioso castelo,
paisagens nevoentas e penumbrosas, uivos de lobos, esvoaçantes
morcegos... Era muito diferente das concepções contemporâneas, com
excesso de ação e de violência, em que o filme se desenrola de
forma vertiginosa, como se o tempo fizesse parte de uma outra
dimensão do espaço-tempo.
Os
faroestes dos idos de 60/70 não tinham as pancadarias, efeitos
visuais exagerados e correrias desenfreadas dos chamados filmes de
ação dos tristes tempos de hoje, em que uma arma de fogo destrói
um caminhão e transforma em ruínas, cinzas e chamas uma mansão.
Tinham verossimilhança e se desenvolviam num ritmo não muito
diferente do da vida real. Os seus eventuais exageros, comparados aos
das películas hodiernas, mais parecem brincadeiras pueris.
Sinto
saudade dessas antigas casas de exibição, que foram, pouco a pouco,
se extinguindo com o lento e gradual desaparecimento dos
espectadores, subtraídos pela televisão, pelas fitas cassetes,
pelos DVDs e outras parafernálias tecnológicas. O Éden deixou de
ser um paraíso, e se transformou em vários pontos comerciais. E o
Cine Nazaré encantou-se, e hoje é uma prosaica Escola de
Contabilidade. Até o seu nome desapareceu, restando apenas a
fachada, que ainda nos faz recordar a magia do cinema, que na minha
infância foi um mistério que eu nunca quis desvendar.
Estimado amigo Elmar,
ResponderExcluirTinha que ser você a escrever esta bonita, sentida e verdadeira página histórica. Não podemos nos esquecer de tempo tão feliz. Não é saudosismo estéril, é recordação que marca toda nossa vida de campo-maiorense. Como jovem (mocinha) não tinha permissão paterna para ver todo filme. Só podia assistir filmes sobre Império Romano, Paixão de Cristo e uns poucos românticos tais como: E o vento levou, Dr. Jivago, Candelabro Italiano, Deus como te amo e alguns mais de doces e puras lembranças.
Venturoso o campo-maiorense da sua e da anterior geração que poderá ler esta completa e poética descrição de um "monumento" do mundo juvenil, que ficou pra trás, mas jamais será esquecido ou ultrapassado.
Parabéns por nos proporcionar este valioso presente de recordação!
Obrigada, obrigada mesmo pelo alento ao meu velho coração que não se cansa de amar CampoMaior e os campo-maiorenses.
Abraços,
Sílvia Melo
Mestre,
ResponderExcluirBrilhante crônica/documento. Empolguei-me tanto que postei o link no meu facebook para a apreciação dos que viveram a época e sobretudo àqueles mais jovens que desconhecem essa página tão importante da nossa história local.
Parabéns!!!!!!
Obrigado, caro Zé Francisco, por essa importante divulgação de nossa crônica.
ResponderExcluirCaro Poeta Elmar,
ResponderExcluirSua crônica me transportou ao Cine Teatro Oeiras da minha infância e adolescência. Vivemos experiências semelhantes e eu as guardo na lembrança com muito carinho. Hoje com mais de 70 anos de idade, o velho cine da Velha Capital foi recentemente restaurado e reativado, mas ainda deixa a desejar em alguns aspectos. Por exemplo: não dispõe de uma verdadeira tela de cinema, e as exibições são num telão de vídeo. A diferença é grande. Espero que isso se resolva. Quanto ao Giuliano Gemma, só agora tomei conhecimento da sua morte. É claro que ele era meu ídolo. Afinal, eu era fã incondicional de faroeste. Dentro das minhas possibilidades, assistia a todos os filmes e lia todos os "livros de bolso" do gênero.
Um abraço.
Gutemberg Rocha
Caro Gutemberg,
ResponderExcluirLendo seu comentário, lembrei-me que também li vários livros de bolso, com ficções dos gêneros faroeste e policial.
Outro dia, por curiosidade e também por causa do avanço tecnológico na área de audio-visual, perguntei a um dos servidores dos Cinemas Teresina sobre como eram exibidos o cinema atualmente; pelo que ele me explicou ainda são utilizadas as fitas de celuloide e consequentemente a máquina para projetar a película na tela. Talvez, mas não afirmo isso, essa tecnologia seja também ainda utilizada para dificultar a "pirataria" das cópias clandestinas, que reduzem os lucros dos produtores e artistas. O fato é que sobrevive a figura do projecionista de nossas velhas casas de exibição de outrora, que existiam em várias cidades interioranas (em Teresina cheguei a frequentar o Rex e o Royal). Como as fitas são novas e as máquinas de projeção evoluídas, não há as famosas quebras de fita de antigamente, que provocavam os assobios e vaias da assistência, como no tempo de nossa infância e adolescência.
Espero que na nossa Oeiras seja instalada uma tela própria.
Se o amigo ainda não o assistiu, assista ao filme Paradiso, que lhe trará, acredito, um encantamento paradisíaco e cinematográfico.
Abraço,
Elmar Carvalho
Assisti Cinema Paradiso há muito tempo. Espero revê-lo qualquer dia desses. Quanto à fita de celuloide, sua informação veio confirmar minha suspeita. A propósito, quando adolescente eu vivia catando pedaços de fita no lixo do Cine. Juntamente com alguns amigos, confeccionávamos uma máquina de projeção e exibíamos o filme para nós mesmos. Usávamos caixa de sapato, lâmpada cheia de água, foquito e pilha de lanterna... Depois evoluímos e tínhamos uma caixa de madeira e lentes de aumento. Evidentemente a imagem era parada e distorcida, e a legenda ilegível, mas era um grande barato. Hoje, meu sonho é ver o Cine Teatro Oeiras funcionando como um cinema de verdade.
ResponderExcluirUm abraço.
Gutemberg Rocha
Li com indizível prazer o seu escrito sobre o Cine Nazaré e Cine Teatro Éden. Durante a gostosa e salutar leitura, reportei-me ao Cine Theatro 4 de Setembro, o Cine Rex. Bem antes o Cine ideal, o Cine Olímpia, o Cine São Luis, etc.
ResponderExcluirBota saudosismo nisso.
Abs.
Orlando
Como é bonito ver um pouco do passado de nossa querida Campo Maior!
ResponderExcluirMesmo com parca tecnologia, a sociedade daquela época buscava como forma de lazer e entretenimento coisas simples ou mesmo pouco elaboradas. Assim como percebemos neste belo relato reminiscente.
Atualmente com o grande avanço da modernidade e em tão pouco tempo, as pessoas não param mais para relembrar fatos tão saudosistas, em que outrora se deleitaram. Bem como, a velocidade da locomotiva do cotidiano, não lhes permite perceber as coisas pequenas que trazem o sentido da nossa felicidade, da nossa vida.
Parabéns, grande poeta, por nos rememorar fatos tão belos!
Antonio Wilson.
Obrigado pelo seu comentário e palavras de incentivo. Você observou muito bem o sentido primordial de nossa crônica.
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