Fonseca
Neto
Uma história de certa matriarca contada por um patriarca. Tudo assim – ela, ele e a própria história –, qual metáforas de uma prosa irresistível e doida de bonita.
O
cenário de suas vidas em percurso é, outrora, o Piauí árido e
marcado por uma serrania quase nua, onde é difícil distinguir os
piauizeiros de antigos pernambucanos e de baianos... Por lá, as leis
que separam as gentes, pela autonomia política, p. ex., não separam
as famílias e sua ancestralidade forjada na comunhão de valores que
as singularizam. Mas é cenário dessa trama, sobretudo,a estação
do tempo presente, quando os escaninhos do ser-mãe essencial da
matriarca sertãse abrem e sua memóriafoge qual perfume do vidro...
A alquimia do patriarca, furtando ao esquecimento seu butim, consiste
em capturar nessa fluidez a matéria memorial plena de sua matriarca.
“Dona
Purcina – a matriarca dos loucos”, lançado em 2012:claro que
muitos amigos leitores já leram ou pelo menos ouviram falar desse
livro do professor Cineas Santos. Trata-se da história de uma mulher
singular sob vários aspectos, cuja vida revisitada revela as
dimensões entre fantástica e dramática da sertaneja típica do
nosso sertão recuado.
Uma
matriarca dos loucos? E por que não o direito dos loucos ao
aconchego de uma matriarca? Examinem-se os materiais cognitivos de
alguém capaz de amá-los e na certa se descobrirá u’alma
grandiosa. Segredo? Purcina os acolhia qual “normais”.
Contando
em crônicasassim cheias de muita graça, Cineas compõe um painel
biográfico de sua mãe, Purcina, com aquele hálito da memória dela
quando partia em regresso “para dentro de si” e pesponta a
narrativa com os fios puxados de seu próprio acervo memorial,
cultivado com orvalho poético.
Purcina
era filha dos camponeses José Malaquias das Chagas, um caripina, e
Ana Rosa, nascida em 14 do século passado, no lugar São Braz,
antigo município de Caracol. Antes de se casar com Liberato, em
1935, sua vida certamente foi marcada pelas duas mais graves secas
nordestinas do Novecentos, a de 15 e a de 32, além de ter saído
incólume, vantagem de morar naquele ermo, da tristemente famosa
gripe braba, de 19.
Camponesa
assim temperada, nela as sabedorias virtuosas encontrariam uma
possibilidade de manifestação e expansão. Purcina e Liberato
fundaram um lugar de morar e cultivar a sobrevivência, batizado por
ela de Campo Formoso; aqui tiveram e criaram os filhos. Ela, com um
olhar no futuro, tendo na miragem dos estudos deles a âncora do
futuro feliz.Ele, tranquilo, “cidadão respeitável”, provendo as
soluções encaminhadas pelo senso intrépido dela.
Tempo
de escola dos meninos, rumam, ela à frente, e eles, para a cidade de
São Raimundo Nonato, ali nas redondezas. De São Raimundo para a
distante Teresina, já adiantado nos estudos, vem um deles, o Cineas,
ao que parece o mais campoformosino de todos, e aqui, aldeão sem
errâncias abissais, sertanejará de sabedoria maior, e até hinará,
a capital que o Piauí criou, noutro contexto, com certo sentido de
insertanejamento.
Matriarca
sertaneja no sentido de Purcina, além da têmpera pétrea,
significa, a varoa de palavra firme, mandatória, mas que a limpidez
da vontade incontida de justiça, releva eventuais ranhuras da
aspereza...
Cineas
Santos presenteia a nós todos com esse inventário de memórias de
dona Purcina – e de seu Liberato. Vida tiveram relativamente
comum.Sua história fixada em sede da melhor escrita, porém,
engrandece o presente ofertado, dizendo aos esnobes de certa
modernidade, que a ética/estética dos valores dos povos da roça,
são esperança e não sinal de desvanecimento da condição humana.
A
matriarca do Campo Formoso, valente e doce, foi surpreendida pela
“insidiosa” trama do Alzheimer. Sua memória e referências
centrais foram “sequestradas” em direção ao pretérito, numa
espécie de descronologia que desumaniza.
O
matriarcado purcinense e os valores universais da vida humana dos que
viveram e vivem para cuidar é a essência que Cineas Chagas Santos
compartilha conosco nesse livro que, até mesmo os que não tiveram a
ventura de saber ler e escrever, gostariam de ter feito para dizer
coisas assim...
-Chegando para encontrá-la, de camisa amarrotada..., levantou-se, e
começou a alisar-me a camisa...
Salve! Oh! Patriarca dos
lúcidos.
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