quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O patriarca dos lúcidos


Fonseca Neto

Uma história de certa matriarca contada por um patriarca. Tudo assim – ela, ele e a própria história –, qual metáforas de uma prosa irresistível e doida de bonita.
O cenário de suas vidas em percurso é, outrora, o Piauí árido e marcado por uma serrania quase nua, onde é difícil distinguir os piauizeiros de antigos pernambucanos e de baianos... Por lá, as leis que separam as gentes, pela autonomia política, p. ex., não separam as famílias e sua ancestralidade forjada na comunhão de valores que as singularizam. Mas é cenário dessa trama, sobretudo,a estação do tempo presente, quando os escaninhos do ser-mãe essencial da matriarca sertãse abrem e sua memóriafoge qual perfume do vidro... A alquimia do patriarca, furtando ao esquecimento seu butim, consiste em capturar nessa fluidez a matéria memorial plena de sua matriarca.
Dona Purcina – a matriarca dos loucos”, lançado em 2012:claro que muitos amigos leitores já leram ou pelo menos ouviram falar desse livro do professor Cineas Santos. Trata-se da história de uma mulher singular sob vários aspectos, cuja vida revisitada revela as dimensões entre fantástica e dramática da sertaneja típica do nosso sertão recuado.
Uma matriarca dos loucos? E por que não o direito dos loucos ao aconchego de uma matriarca? Examinem-se os materiais cognitivos de alguém capaz de amá-los e na certa se descobrirá u’alma grandiosa. Segredo? Purcina os acolhia qual “normais”.
Contando em crônicasassim cheias de muita graça, Cineas compõe um painel biográfico de sua mãe, Purcina, com aquele hálito da memória dela quando partia em regresso “para dentro de si” e pesponta a narrativa com os fios puxados de seu próprio acervo memorial, cultivado com orvalho poético.
Purcina era filha dos camponeses José Malaquias das Chagas, um caripina, e Ana Rosa, nascida em 14 do século passado, no lugar São Braz, antigo município de Caracol. Antes de se casar com Liberato, em 1935, sua vida certamente foi marcada pelas duas mais graves secas nordestinas do Novecentos, a de 15 e a de 32, além de ter saído incólume, vantagem de morar naquele ermo, da tristemente famosa gripe braba, de 19.
Camponesa assim temperada, nela as sabedorias virtuosas encontrariam uma possibilidade de manifestação e expansão. Purcina e Liberato fundaram um lugar de morar e cultivar a sobrevivência, batizado por ela de Campo Formoso; aqui tiveram e criaram os filhos. Ela, com um olhar no futuro, tendo na miragem dos estudos deles a âncora do futuro feliz.Ele, tranquilo, “cidadão respeitável”, provendo as soluções encaminhadas pelo senso intrépido dela.
Tempo de escola dos meninos, rumam, ela à frente, e eles, para a cidade de São Raimundo Nonato, ali nas redondezas. De São Raimundo para a distante Teresina, já adiantado nos estudos, vem um deles, o Cineas, ao que parece o mais campoformosino de todos, e aqui, aldeão sem errâncias abissais, sertanejará de sabedoria maior, e até hinará, a capital que o Piauí criou, noutro contexto, com certo sentido de insertanejamento.
Matriarca sertaneja no sentido de Purcina, além da têmpera pétrea, significa, a varoa de palavra firme, mandatória, mas que a limpidez da vontade incontida de justiça, releva eventuais ranhuras da aspereza...
Cineas Santos presenteia a nós todos com esse inventário de memórias de dona Purcina – e de seu Liberato. Vida tiveram relativamente comum.Sua história fixada em sede da melhor escrita, porém, engrandece o presente ofertado, dizendo aos esnobes de certa modernidade, que a ética/estética dos valores dos povos da roça, são esperança e não sinal de desvanecimento da condição humana.
A matriarca do Campo Formoso, valente e doce, foi surpreendida pela “insidiosa” trama do Alzheimer. Sua memória e referências centrais foram “sequestradas” em direção ao pretérito, numa espécie de descronologia que desumaniza.
O matriarcado purcinense e os valores universais da vida humana dos que viveram e vivem para cuidar é a essência que Cineas Chagas Santos compartilha conosco nesse livro que, até mesmo os que não tiveram a ventura de saber ler e escrever, gostariam de ter feito para dizer coisas assim...
-Chegando para encontrá-la, de camisa amarrotada..., levantou-se, e começou a alisar-me a camisa... 
Salve! Oh! Patriarca dos lúcidos.

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