A fúria pela fé
José Maria Vasconcelos
Cronista
Não me
esqueço daquela cena cruel, no fundo do quintal, cercado de talos de buriti, na
minha infância, na Piçarra. Meu pai não queria galinhas de vizinhos em nosso
território e me ordenava que as tangessem de volta. Um dia, enfurecido com a
persistência de um pinto, torci-lhe o pescoço até morrer. Não senti pena, nem
remorso por atender a ordem de meu pai.
Neste momento,
a França ainda chora o ataque bárbaro de três terroristas islâmicos contra
jornalistas. O mundo aglomera-se nas praças, reza e protesta. E se pergunta: Por que tanta
fúria, em nome de truculenta obediência religiosa?
A paixão
determina intenso interesse por um ideal, causa ou atividade, que resulta,
muitas vezes, em exacerbada e irracional excitação de descontrole emocional.
Paixões - amorosa, esportiva, política e
religiosa - sem freios emocionais, podem
desencadear ódio, vingança, morte e suicídio. Temas de encher páginas de romances,
novelas, contos, crônicas, poesias e manifestações artísticas. Inclusive do
jornalismo e judiciário.
O mundo vive
de paixões e conflitos amorosos e partidários. O equilíbrio emocional, porém, é
resultado da educação sadia dos instintos e temperamento. Na história da
educação religiosa, a fé quase sempre se manifesta pela intransigência e
conflitos.
No Antigo
Testamento, judeus arvoravam-se únicos herdeiros das promessas divinas. Não
entravam nas casas de pagãos, não se aliavam a outros povos, não se uniam em
casamento. Em nome de Javé, matavam adversários, conspurcavam bens e
territórios. No salmo 138, que retrata a escravidão dos hebreus, na Babilônia,
encontra-se o sentimento de ódio e vingança que arrepia: Ó filha da
Babilônia, a devastadora, feliz aquele que te retribuir o mal que nos fizeste!
Feliz aquele que se
apoderar de teus filhinhos, para esmagá-los contra o rochedo!
A pregação de
Jesus fugia totalmente à intolerância religiosa de seu povo: comia e bebia com
os pecadores, entrava nas residências das autoridades romanas, acolhia prostitutas,
curava pagãos. Foi condenado à morte, por defender a conciliação, perdão,
tolerância, amor aos excluídos e o reino de um mundo sem fronteiras do ódio.
Na Bíblia do
Antigo Testamente, encontram-se mais estímulos à violência do que no Alcorão.
De ambos, porém, as paixões religiosas tentam extrair interpretações para a
prática do ódio, geralmente alicerçada em domínios e defesa da fé. A Igreja
Católica herdou, durante séculos, a crueldade pagã do império romano, com as
Cruzadas e Inquisição, esta utilizada, também, por correntes protestantes. Na
década de 1960, o candidato à presidência dos Estados Unidos, Robert Kennedy,
defendia, em livro, caso fosse eleito, maior aproximação com o Oriente. Segundo
Robert, o Ocidente (ingleses, americanos e franceses) devia aos orientais um
acerto de contas pelos regimes de escravidão e usurpação no Oriente, acelerado
nas descobertas de petróleo. A cultura oriental cultiva anos de paciência para
alcançar objetivos. O passado de domínios e humilhações não lhes escapa da
memória. Paixões baseiam-se em obediência e interpretações religiosas cegas.
Neste caso, nem um pinto se salva de uma degola.
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