OPERAÇÃO CATA PIOLHO
Jacob Fortes
Notório para os que viajam de automóvel por esse Brasil afora
é o fato de que as rodovias federais, invariavelmente, passam ao largo das
urbes populosas, mas tratando-se dos vilarejos e demais aglomerações rarefeitas
do interior cortam-nas ao meio. É justamente nessas povoações ralas que se
percebe, desde que desapressadamente, o estranho, particular e simiesco hábito
que vige nessas comunidades vilarinhas e interioranas. Trata-se da tarefa (a
batizei de “operação cata piolho”) de expurgar das densas cabeleiras femininas,
raramente das masculinas, os infestos ectoparasitas: piolhos, lêndeas e
animálculos em geral. Executada com raro zelo e prazer, a tarefa, que mais
parece uma diversão, inicia-se no principiar das tardes dominicais. Para tomar conhecimento da inusitada prática
não precisa ao transeunte ter olhos de tetéu, nem ser observador arguto, pois o
procedimento, ritualístico, ocorre à evidência, em alto relevo (na calçada, no
terreiro, nos desvãos das portas), enfim em todos os locais onde habitam os que
ainda não suspenderam a greve de assepsia. Tão logo a hospedeira, mais das
vezes de cabeleira em tempestade, senta-se ao chão e espalda-se na entreperna
da catadora, esta sentada à calçada ou num tamborete, dá-se início ao paciente
trabalho de garimpagem. Enquanto a catadora, prazerosamente, vai arrepelando
aquela cabeleira (poenta por falta de asseio) para subtrair e despejar as
manadas invasoras, aninhadas no interior do latifúndio capilar, a hospedeira,
por esquecidas horas, vai gozando, queda, as delícias de uns cochilos. Haja
habilidade e dedos para filar tanto inseto! Melhor para as galinhas que
espreitam, impacientadas, a colheita das larvas e pupas capturadas no interior
do enorme cipoal. Afinal, neste mundo nada se perde, exceto vontade de pobre e
guimba de cigarro. Mas a cabeça da catadora há de estar protegida por uma toca,
ou pano, pois os fugitivos, em demanda de novos esconderijos, se abismam feitos
pulgas e vão-se homiziar na maçaroca mais próxima. As cabeleiras densas e
ingentes somente podem ser garimpadas por eito ou por talhão, hipótese em que a
catadora carece de certos instrumentos de trabalho: pente de ferro tipo rastelo
e piranha reforçada para piquetear o terreno. Sobre cada talhão arrepelado a
catadora aplica um líquido oleoso e malcheiroso, símile ao azeite de mamona. A
desconfortante cena, porém, mais inestética que estética (protagonizada pelas
camadas mais puídas da sociedade), apenas vivifica legado reinol: a esquadra
que trouxe a família real para o Brasil veio abarrotada não apenas de pessoas,
mas principalmente de piolhos: “Afligida por tempestades e infestações de
piolhos, a corte atravessa o oceano. Para combater a praga, as mulheres nobres
tiveram de raspar os cabelos e untar as cabeças carecas com banha de porco e pó
antisséptico à base de enxofre”.
A natureza dos fios capilares constitui curiosidade
acessória: uns rijos e grossos semelhantes à cerda do caititu; uns negros da
cor do azeviche; uns fulvos remetendo ao sarará; uns riçados, outros
desenriçados e assim por diante.
Na falta de um parasitologista ou de um Ministério da Saúde
para acudir na tarefa de despejar esses inquilinos parasitários — que dia e
noite castigam os hospedeiros comichando-lhes a cabeça, — melhor fariam os
donos desses latifúndios se derrubassem em corte cerce as suas florestas
capilares e, na sequência à raspagem, aplicar produto desinfetante de enérgica
propriedade antisséptica, a bem dizer o detefon.
Digno de espanto ou admiração, apupo ou ovação, conforme a
opinião que se tem, verdade é que o costume é exemplo frisante desse enorme
mosaico nacional: a identidade cultural brasileira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário