Homero, sua esposa Hilma e vários de seus confrades da APL |
Olhar pedagógico em Imagem do sol
poente
Carlos Evandro M. Eulálio
Professor, escritor e crítico literário
Devo confessar a imensa satisfação em
apresentar esta significativa obra, Imagem do Sol Poente, do escritor Homero
Castelo Branco, da Academia Piauiense de Letras, consagrado autor de vasta
produção literária.
Ao contato com suas primeiras
páginas, percebi estar diante de um livro cujo mérito não se deve apenas ao
conteúdo literário de suas histórias, mas à intensidade artística com que o
autor as escreve.
“As obras belas são filhas de sua
forma.” Diz Paul Valéry.
O livro reúne um conjunto de crônicas
ou relatos breves versando sobre temas diversos, escritos em linguagem simples
e espontânea, correta, criativa, fluente e bem humorada. Por vezes, as crônicas
de Homero Castelo Branco tomam a forma do ensaio filosófico ou do relato
memorialista e de circunstância, confirmando, portanto, o caráter híbrido desse
gênero textual cuja matéria prima, na visão de Luís Fernando Veríssimo, “são as
relações humanas. O modo como as pessoas se amam, se enganam, se aproximam ou
se afastam num ambiente social definido.”
É recorrente, nessas duas
modalidades de gênero mencionadas, o propósito pedagógico do autor, quando
intenta transmitir ao leitor sábias lições
decorrentes não só da sua experiência existencial, por sinal inseparável
da atividade de escritor, mas também do farto repertório de leitura que possui
e que projeta com exuberância de detalhes nos textos que escreve, resultantes
de suas incursões no universo da filosofia, da história, da poesia e das artes
em geral.
Conforme José Carlos Libâneo,
“pedagogo é o profissional que atua em várias instâncias da prática educativa,
direta ou indiretamente, ligadas à organização e aos processos de transmissão e
assimilação ativa de saberes e modos de ação, tendo em vista objetivos de
formação humana definidos em sua contextualização histórica. Em outras
palavras, pedagogo é um profissional que lida com fatos, estruturas, contextos,
situações referentes à prática educativa em suas várias modalidades e
manifestações” (LIBÂNEO, 1996). Esse conceito amplia a noção de educador quanto
ao campo de atuação: não é somente profissional da educação aquele cujo
exercício docente restringe-se apenas à escola, mas também é alguém cuja
prática educativa ocorre num espaço que ultrapassa as fronteiras da sala de
aula. No ensaio A Literatura e a formação do homem, Antônio Cândido destaca a
função formadora da literatura “que atua como instrumento de educação, de
formação do homem, uma vez que exprime realidades que a ideologia dominante
tenta esconder.” Essa citação ratifica o poder que tem a literatura de influir
na formação intelectual do leitor. O conhecimento que Homero Castelo Branco
transmite nas crônicas de Imagem do sol poente, sem arrogância intelectual, é
também isento de transbordamentos pretensiosos, porque o seu propósito não é
comunicar verdades absolutas, mas refletir com o leitor sobre temas que têm
relevância para uma maior compreensão de mundo, a fim de que possa atuar na
sociedade como cidadão crítico, considerando valores morais e éticos.
A reflexão pessoal e intimista é
o fio condutor das histórias e relatos. Pelo viés da memória e tomado de afeto
e emoção, Homero revive nas páginas da obra Imagem do Sol poente suas diversas
fases da vida. São acontecimentos que constituem uma série de textos, formando
um grande painel em que se sucedem os encontros e viagens, os antepassados, a
família, a infância, a adolescência, a velhice, os tempos de estudante e de
político, os episódios vividos em Fortaleza, em Teresina ou “entre lençóis e
travesseiros” na casa do sítio Marathaoan.
Na mensagem ao leitor no início
do livro, o próprio autor adverte: “Que livro é este? Perguntam. Dê a esta
narrativa o título que quiser. Certamente não é romance nem ficção. Também não
é ensinamento. O ser humano possui uma sabedoria secreta e cada leitor sabe
mais do que eu sobre como viver, como ser feliz, como amar.”
Homero Castelo Branco assim
explicita sua vocação pedagógica: “o conhecimento é uma dádiva. Saber dividi-lo
é um exemplo de sabedoria. [...] Ninguém nasce sabendo, portanto pergunto. Todo
dia é uma existência em miniatura, procuro sempre aprender uma coisa nova.
[...] Todo sábio sabe que não sabe nada. Aristóteles, filósofo grego sabia
disso e olhe quem era. Ninguém precisa entender as estrelas, nem contá-las, nem
nada, basta apreciá-las, respeitá-las, enternecer-se com o brilho delas pelo
infinito afora.”
No texto Sonho com minhas
viagens, por exemplo, Homero dá lições de turismo ao leitor, mostrando-lhe a
importância de compreender e sentir a vida histórica, social e cultural da
cidade que visita, embora às vezes tenha de sair da zona do conforto: “Lamento
ver pessoa que dá volta ao mundo e se angustia diante de situação que costumo
ficar maravilhado. Que torce o nariz para o odor dos tanques de curtidor e tintureiro
de pele em Fez, no Marrocos. [...] Viajar sem estar minimamente informado sobre
o destino escolhido é bem parecido como não viajar. É assistir a um show de
música no Central Park, mas não tira o olho do ipad; ir ao Rio de Janeiro, mas
tem medo de visitar a Lapa; ir a Buenos Aires, mas não pensa em prestigiar o
tango – programa de velho. Olha tudo de cima, julgando, depreciando, como se o
fato de se entregar ao local visitado fosse uma espécie de servilismo – como se
tivesse vergonha de ser turista”.
Para Homero, toda viagem exige
espírito aberto, aquela disposição de enfrentar o desconhecido. Aos que só se
lembram das coisas que deram errado nas viagens, adverte que “viajar é um
convite ao inesperado.” Sobre viagens disse José Bonifácio, nosso Patriarca da
Independência: “Homens que de sua terra não saem são navios que acabam no
estaleiro... Errando por esse mundo se aprende a não cometer erros.”
A cidade sempre foi matéria de
interesse da literatura. Nas narrativas de Rubem Fonseca, a modernização e o progresso
das cidades não contiveram o avanço da violência e a desumanização da
sociedade. Assim também é a Cidade Verde dos anos 1960, vista pelo autor, ao
resgatar pela memória um cenário urbano muito distante de nós, que vale a pena
ser conhecido na obra Imagem do sol poente pelos que não tiveram o privilégio
de ter vivido em Teresina, na época em que “Havia cadeira nas calçadas para a
conversa,” diz o autor. Com nostálgico desencanto, Homero também testemunha as
transformações que o fazem rever a cidade “com os olhos da saudade [...]. A
Teresina de meus amores não existe mais, a não ser na recriação de minha
nostalgia.” É a cidade que Homero escolheu para viver: “Devo muito a Teresina,
sobretudo por ter-me recebido e tratado como filho natural desta terra. [...] É
a cidade de nascimento de meus filhos, que progridem, fazem seus sonhos e
edificam sua realidade.”
A velhice é descrita pelo autor
como algo a que todos estamos fadados. No entanto, a ela se refere com
resignação e sabedoria no texto O corpo é traidor, no qual dialoga a esse
respeito com filósofos, poetas e artistas. Em outro texto, chama a atenção do
leitor para a distinção entre velho e idoso; “O idoso sonha, o velho apenas
dorme; o idoso sente o amor, o velho só sente ciúme e possessividade; o idoso
tem o dia de hoje como o primeiro do resto de sua vida, o velho é quando todo
dia parece o último de sua longa jornada.”
Para Cortella, “...é absurdo
acreditar na ideia de uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para que
alguém quanto mais vivesse mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto e ir
se gastando... Isso não ocorre com gente, e sim com fogão, sapato, geladeira”.
É com esse propósito que Homero nos ensina a ser idosos e não velhos: “Minha
tolerância por ser idoso e não velho ficou mais elástica, inclusive com a
burrice alheia. Claro que desenvolvi a paciência de um monge, porém deixei de
correr o risco de morrer de raiva, enfurecido por qualquer besteira. Descobri
que não posso controlar tudo aquilo que acontece a meu redor, a falar menos e
escutar mais.”
Muito aprendemos com o autor nas
páginas desta obra, quando evoca de uma perspectiva do homem já vivido,
lembranças de pessoas e acontecimentos, às vezes os mais íntimos, por meio de
uma elaboração textual que mais e mais desperta a curiosidade e o interesse do
leitor. A propósito, a educadora Maria Luíza Ritzel Remédios afirma: “Parece
que a literatura confessional é aquela que mais se aproxima do leitor, porque
fala de um eu, de uma pessoa viva que ali se encontra e que diante do leitor
desnuda sua vida, estabelecendo-se, então, uma perfeita união entre autor e
leitor” (1997, p.9).
Essa fusão existe também pela
atmosfera lírica que se instala no texto, quando os elementos do real entram em
tensão com o imaginário, para criar uma nova realidade atrás da qual o autor
desaparece. Esse fenômeno literário se constata em vários textos desta obra,
porém o destaque vai para a crônica O hóspede, na qual o narrador descreve as
ações de um hóspede excepcional, que acolheu em casa durante vinte dias, a quem
se concederam regalias e privilégios. O leitor, até descobrir que se trata de
um bebê e não de um adulto, surpreende-se com as regalias do hóspede e com a
atitude do anfitrião em aceitá-las: “Poderíamos acusá-lo de incontinência,
porque não sabia distinguir entre o cômodo e o que lhe ocorria fazer, fazia em
qualquer parte. Zangar-se com ele, não. Jamais ninguém se voltou para ele que
não sorrisse; algum impulso de irritação contra ele sentiria desarmado com sua
maneira de olhar. Viajou, meu amigo Nícolas. Fico refletindo na falta que faz o
amigo de nove meses de idade ao seu companheiro de setenta anos, vivido e
puído.”
Vale ressaltar o lirismo e a
habilidade literária com que Homero tece essa crônica, a exemplo do texto de
Drummond, No aeroporto, cuja discursividade também manifesta com emoção o
sentimento de saudade, em virtude da ausência da criança.
Convém ainda ressaltar neste
livro o largo emprego de aforismos, que reforçam o aspecto pedagógico do autor,
cujo discurso concilia literatura e filosofia, bem ao estilo machadiano. A
respeito dos aforismos, referiu-se o jornalista e escritor James Geary: “Os
aforismos são a bagagem de mão da literatura. Leves e compactos, eles cabem
facilmente no compartimento superior do nosso cérebro e incluem tudo o que
precisamos para atravessar um dia difícil no escritório ou uma noite
melancólica da alma” (GEARY, 2007, p.20). São frases curtas que condensam
conceitos amplos, espécie de Idea-creating, expressão atribuída ao escritor
Vernon Sproxton, citado por Gabriel Perissé, para denominar “as frases que
ficam dando voltas em nossa mente, criadoras de ideias, isto é, frases
propulsoras que nos encaminham sempre para o ponto de partida”, como estas
citadas neste livro por Homero Castelo Branco:
“Cada texto literário é um pedido
de hipoteca de um pedaço do tempo e do amor de seus possíveis leitores.”
“A vida é uma bênção, mas tem
prazo de validade.”
“A religião é importante não só
para a atividade mental e física do homem, mas também para o entendimento
social do ser humano.”
“Sonho com o dia quando todas as
coisas do mundo serão pintadas de azul, além do céu e do mar, que imagino serem
do azul mais profundo.”
“A gente envelhece quando se para
de sonhar.”
Na literatura brasileira, além de
Machado de Assis, outros autores destacaram-se na arte aforística, como Antonio
Maria, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, Murilo Mendes, Mário Quintana,
Clarice Lispector, Guimarães Rosa e tantos outros.
Concluo esta apresentação,
lembrando que Rubem Alves presume dois tipos de livros: “os que a gente lê e
nunca mais... E os livros raros, que a gente nunca termina de ler porque, uma
vez lidos, a gente começa de novo. [...] Cada nova leitura é uma experiência
única de prazer”. É o caso do livro Imagem do sol poente, cujos capítulos
seduzem pela capacidade literária de Homero Castelo Branco em transmitir
saberes relevantes, com sensibilidade e a convicção de que está contribuindo
para a formação do leitor como um ser ativo e crítico no processo histórico e
cultural da sociedade.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Livros que a gente
nunca termina de ler... Apud ANTÔNIO, Severino, A utopia da palavra. Rio de
Janeiro, RJ : Lucerna, p. 9
CÂNDIDO, Antônio. A literatura e
a formação do homem. http://revistas.iel.unicamp.br, acessado em 15/5/2016.
CORTELLA, Mário Sérgio. Não
nascemos prontos!: provocações filosóficas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p.11.
GEARY, JAMES O Mundo em uma
frase. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2007.
LIBÂNEO, José Carlos. Que destino
os educadores darão à pedagogia? In Pedagogia, ciência da educação? São Paulo :
Cortez, 1991, p.107/134.
REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel
(Org.) Literatura Confessional: autobiografia e ficcionalidade. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1997.
VERNON Sproxton apud PERISSÉ,
Gabriel. Elogio da leitura. Barueri, SP : Manole, 2005, p. 89/90.
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