quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Histórias de Évora - Capítulo XXVIII


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXVIII

Moto contínuo

Elmar Carvalho

No Sábado de Aleluia o Mário Cunha apareceu na casa de Marcos com uma galinha grande e gorda. Perguntou se dona Rita poderia fazer um frito para que eles levassem para o balneário do Rocio, situado no rio Paraguaçu, a uns três quilômetros do centro da cidade. Na época era costume, sobretudo entre os jovens, a subtração de galináceo na Semana Santa, para a comemoração da morte de Judas.

Não era isso entendido como furto, mas como uma brincadeira, que poderia integrar a parte comemorativa da malhação do velho Iscariotes. E normalmente as vítimas eram parentes, vizinhos ou amigos. Dona Rita indagou sobre a origem da galinha, tendo Mário assegurado que fora sua mãe quem lhe dera a “penosa”. Ante a aquisição haver sido lícita, ela prometeu fazer seu famoso e elogiado frito, já saboreado em outras ocasiões.

Ficou acertado, entre os rapazes, que no dia seguinte, Domingo de Páscoa, Mário seguiria em sua bicicleta Gulliver, mais cedo, e o Fabrício, em sua lambreta, pegaria Marcos (e o frito) na casa deste. Combinaram se encontrar no balneário, por volta de onze horas. Fabrício prometeu levar uma legítima cachaça serrana, de doze anos, que comprara de um mascate, de sua confiança, e mais uma paçoca de carne de sol, preparada em sua casa. De modo que estavam bem abastecidos, em termos de comes e bebes.

A região do Rocio, nessa época, era bem preservada, com a mata ciliar exuberante, a proteger o rio, a exibir grandes árvores copadas. O rio se apresentava saudável, estreito e fundo. Na margem direita havia uma espécie de corredeira. A água passava com estrépito por entre grandes pedras, que formavam uma garganta, um tanto apertada, o que imprimia à água uma forte correnteza e turbilhão. Chamavam esse ponto de Passagem da Apertada Hora.

As águas ondulavam e produziam uma toalha de espuma. Um poeta disse que as pedras eram bilros das pedras tecelãs. O turbilhão se transformava em verdadeira hidromassagem. Alguns jovens, no auge da adolescência e da libido, a contemplar as garotas de biquíni na margem próxima, chegavam ao orgasmo sem sequer se tocarem, em verdadeiro onanismo inefável, etéreo, quase imaterial, como corolário de profunda excitação platônica e fantasiosa, turbinada pelo turbilhão da corredeira.

Mas muitos garotos afoitos, sobretudo no período das grandes chuvas, em que o rio se mostrava mais caudaloso, em lugar de êxtase e prazer, ali encontravam a morte. Eram arrastados e ao caírem num rodamoinho não tinham força para vencer a correnteza. Os mais cautelosos se amarravam a uma corda, firmada na margem ou em alguma das pedras. Entretanto, fora desse ponto agitado, as águas eram calmas, e chegavam a formar um remanso na parte mais frequentada, que tinha uma praia de branca, macia e finíssima areia.

Os amigos se acomodaram debaixo de imensa mangueira, que lhes dava uma refrescante sombra. Tomando sol, a pequena distância, estava um pequeno grupo de garotas. Duas mais recatadas estavam de maiô, enquanto as outras quatro usavam biquíni, a exibir suas coxas e feminis curvas. Nessa idade em que tudo sorri e floresce, Marcos achava que uma mulher tinha a obrigação de ser bela, ao menos bonitinha. Fabrício, invocando os versos de Vinicius, achava que a beleza, conquanto efêmera, era fundamental; pelo menos enquanto durasse.

No meio das moças, estava Laura, de estatura mediana, morena clara, de cabelos e olhos negros, de curvas muito bem delineadas, sem faltas e sem excessos. Mesmo de maiô suas formas eram ressaltadas e se destacavam, aliciantes. Seus olhos eram profundos e negros, como nos versos de Castro Alves. Tinham o negrume das noites sem luar, assim como seus ondulados cabelos tinham o encanto do mar.

Marcos já lhe percebera, algumas vezes, quando passava na frente de sua casa, com destino ao campo de futebol que ficava perto, o olhar discreto, mas interessado. Fabrício já comentara isso, e até dissera que quando tivesse oportunidade iria fazer “o meio de campo” ou a ponte entre eles, pois fora colega dela em um Encontro de Jovens promovido pela igreja Católica. Mas ainda estava encantado com o namoro furtivo e proibido que mantinha com sua bela normalista.

Três ou quatro alentadas doses depois, Fabrício foi até o local onde estavam as moças, já agora debaixo de um imenso pé de tamboril, que estava muito verde e muito frondoso. A árvore lhes propiciava uma sombra agradável e aconchegante, ainda mais porque bem perto havia um grande cajueiro e uma imensa e odorífera cajazeira.

Marcos sabia que ele estava intermediando uma aproximação entre ele e Laura. Ficou um pouco ansioso e apreensivo, mas tentou manter a calma e não saiu de seu lugar, enquanto esperava o retorno do amigo. Via-o gesticular e se mover um pouco, como se estivesse em animada conversação. Fazia gestos incisivos, com os quais parecia sublinhar seus argumentos, como se estivesse querendo convencer a garota de alguma coisa que ela tentasse refutar.

Quando voltou estava radiante, e exibia seu triunfo com sorrisos e gargalhadas.
– Olha, mestre Marcos, você me deve essa conquista. Não foi tão fácil assim não. Quando eu disse pra menina que você estava a fim dela, ela disse que você é meio metido a besta, e que nunca olhou pra ela; que sempre passava todo enxerido, como se não a visse, na porta da casa dela. Eu, então, tive que usar toda a minha astúcia e lábia de vendedor, para explicar que no início você é meio encabulado e tinha receio de um fora. Só então ela deu um meio sorriso e disse para você tirá-la para dançar na festa que vai haver no próximo sábado, no Évora Clube; que lá vocês poderão se acertar. E ainda de quebra deixei uma das lebres praticamente abatida, aquela lourinha, cujos cabelos faíscam ao sol. Um encanto de ninfeta deste bosque fluvial.
– Grande Fabrício, que magnífica notícia você acaba de me dar. Meu dia já está ganho. Um brinde a esse excelente presente que você acaba de me ofertar. Obrigado, cara!

Nisso, ao longe, ia passando um ciclista, a pedalar com todo vigor para vencer a areia do caminho. Fabrício, contente de haver ajudado o amigo a conquistar a garota, lançou-lhe um desafio:
– Agora, Marcos, prove que é mesmo um poeta. Faça um improviso sobre aquele ciclista, que vai pedalando feito um doido naquele areal. O poeta, ainda tonto e esfuziante com a alvissareira notícia, não se fez de rogado:
– Ó bicicleta / em ti o ciclista anda / anda, anda, anda...

Com a cabeça já um pouco anuviada pelo álcool e entontecido pela inebriante perspectiva de namoro com a linda cachopa, Marcos se embolou todo e não conseguiu a desejada rima. Ficou nesse desatinado “anda, anda, anda”, em busca de inspiração, até finalizar de forma canhestra, mas que pretendia apoteótica:
– E nunca para de andar!

Fabrício vergastou esses versos de forma abrupta e irônica:
– Porra, poeta, só se esse ciclista tiver um motorzinho na bunda para conseguir andar tanto assim... Ou então se tiver descoberto o moto contínuo do poeta Leonardo de Carvalho Castelo Branco, que você tanto admira e exalta.


E os três amigos prosseguiram na feliz libação, a degustarem o delicioso frito e a não menos deliciosa paçoca, sem outro compromisso a não ser a falta de compromisso da quadra que viviam.     

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