quarta-feira, 1 de março de 2017

O romancista da maniçoba e do cangaço


O romancista da maniçoba e do cangaço

Reginaldo Miranda
Membro da APL. Historiador e escritor.


                      Ouvi falar no nome de William Palha Dias, desde cedo, nas conversas de família. É que ficando viúvo, seu pai convolou novas núpcias com uma irmã de minha avó. Mais tarde, também uma sua irmã casou-se com um outro parente. Radicados na povoação de Nova Lapa, hoje cidade de Cristino Castro, então termo de Bom Jesus do Gurgueia, para onde vieram de Caracol, eram hóspedes de meus avós quando vinham a Bertolínia. Era o velho Claudionor Dias, pai do romancista, respeitado rábula, tendo muitas vezes, no exercício profissional, ido à minha Bertolínia natal, a chamado de meu avô, então chefe político de expressão.

Mais tarde, conheci W. Palha Dias em Teresina. Magistrado, romancista, contista, conversador admirável. Membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Dia desses li seu romance Vila de Jurema. Livro admirável, retrata o ciclo da maniçoba e do cangaço no Piauí. À visão aguçada de W. Palha Dias não escapam pormenores: extração do látex, crescimento da povoação de Bom Sucesso e sua emancipação política com o nome de Jurema, invasão de maniçobeiros e jagunços, crendices populares, estórias de lobisomem, feitiços, querelas políticas, adultério, casos de honra, festas do padroeiro com as tradicionais rezas e os forrós tocados pelos violeiros Antão Guaxinim e Domingos Bibiano; nesse mesmo período, apareciam as novidades comerciais trazidas pelo mascate Xanane-Pirrita, principal contato entre aquela população caatingueira, como é conhecida, e o mundo exterior, mas não extraordinárias como as que o cigano Melquíades levava para Macondo, em Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. No entanto, é ponto alto da narrativa o duelo travado entre o vaqueiro Adriano e o cangaceiro/barraconista Herculano, que caíra de amores não correspondidos pela mulher daquele, cercando a casa e matando o casal. W. Palha Dias, acompanha esse embate dramático deixando à mostra toda uma pujante narrativa que prende a atenção do leitor do começo ao fim, com as reflexões, demarches e lances do confronto com rifles “papo-amarelo” e depois com punhais. Era desejo do cangaceiro matar toda a família e até as galinhas do terreiro de sua vítima, felizmente escapando estas e os três filhos menores do indigitado casal, que, por estratégia do vaqueiro conseguiram escapar em meio ao cerrado tiroteio, para a distante casa de um parente.

Não falta a disputa pelo mando político-administrativo da nascente vila, entre os coronéis Veridiano Bernardes e Antero Gomes, aquele natural do lugar, este forasteiro chegado com o surto econômico da maniçoba. Nesse aspecto, W. Palha Dias retrata o passado de sua terra natal, a longínqua cidade de Caracol, plantada no alto da Serra Dois Irmãos. Fácil é se perceber que Vila de Jurema é Caracol, desmembrada do antigo termo de São Romão, nome fictício da serrana cidade de São Raimundo Nonato. O coronel Veridiano Bernardes é seu avô Aureliano Dias, baluarte da fundação de Caracol, ao passo que Antero Gomes é Ângelo Gomes Lima, assim como vários outros personagens secundários são facilmente identificados ao se comparar o romance em referência com o seu livro de estreia, Caracol na História do Piauí (1959). O autor se utilizou desse recurso, e fez muito bem, para ter liberdade na análise de fatos históricos doloridos de relembrar sem ferir suscetibilidades, assim como transitar por lacunas históricas insondáveis, analisando fatos e personagens as mais diversas.

Nessa bela narrativa, W. Palha Dias consegue retratar de forma fiel a vida rude do sertanejo e traçar um grande painel do ciclo da maniçoba no Piauí. Se a Paraíba teve com José Lins do Rego, o seu retratista do ciclo canavieiro e do cangaço, a Bahia com Jorge Amado, o ciclo do cacau, W. Palha Dias resgatou para as letras piauienses o efêmero ciclo da maniçoba e do cangaço. Em sua obra, aparece em toda a sua rudeza a vida do jagunço, a lida da maniçoba e os dias de glória de um curto ciclo econômico que trouxe à evidência a caatinga piauiense. Os caatingueiros do Piauí recebem a sua homenagem, justa e definitiva, na obra de W. Palha Dias, consagrado romancista, cuja obra Vila de Jurema é a continuidade de Endoema, romance de fundo histórico lançado em 1965. E com sua pena prodigiosa, criadora de quase duas dezenas de livros – que se impõem pelo conjunto –, retoma, de certa forma, esse fio narrativo com Marcas do Destino, romance de cunho histórico-biográfico lançado em 2003, cujo personagem narrador sai de Vila de Jurema.

Conforme se disse, Vila de Jurema é o romance-resgate do ciclo da maniçoba e do cangaço, retratando uma importante fase da vida econômica da árida caatinga piauiense, quando a extração e comercialização do látex deu-lhe ares de progresso, fazendo circular a moeda e originando diversas povoações com populações mescladas de maniçobeiros e jagunços, vindos de todos os cantos do sertão nordestino. Por esse tempo, primeiras décadas do século XX, houve uma verdadeira corrida para a caatinga. É quando nascem cidades como Caracol, terra natal do autor, Canto do Buriti, e algumas outras. É, pois, essa corrida, esse frenesi, a extração e venda do látex, a difícil convivência entre os heterogêneos grupos sociais, que retrata W. Palha Dias em sua obra. Estão aí, pululando nas páginas de seus livros os caatingueiros do Piauí, com seu jeito de ser, sua maneira de pensar e agir, seus ajustes de honra baseados na “lei do sertão, que é imutável. Não admite crime sem vingança e nem honra cuja mancha não seja lavada com sangue daquele que a desrespeitou, daquele que a maculou” (p. 208).


Porém, todo esse mundo mítico vem abaixo com a queda do preço da maniçoba, em face do desinteresse da indústria automobilística européia. Sobrevém a decadência. E restam apenas as povoações desertas, as cidades mortas, e a saudosa lembrança de um tempo que se foi. Ficam as conversas tecidas nas rodadas de boca-da-noite, entre um gole e outro de café, por aqueles que não puderam sair, que tinham ali as suas propriedades, as suas parcas economias. Pois, é nesse ambiente que nasce W. Palha Dias, criado ouvindo essas estórias dos parentes e amigos, e guardando-as em sua mente prodigiosa, para mais tarde revelar-nos com o talento que lhe é peculiar. As letras piauienses só têm a agradecer a contribuição desse rebento das costaneiras serranas dois irmãonenses, das reentrâncias e caracóis das serras das capivaras e confusões sertanejas de outrora. Que continue esse belo trabalho de cunho sociológico, trazendo à literatura os costumes de sua gente, áspera, machista, destemida, passional, vingativa, mas profundamente humana. O leitor agradece.

Fonte: Portal Elntretextos

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