Capitão-mor
Manoel Álvares de Souza, devassador do vale do rio Paraim e pioneiro fundador
de fazendas em Parnaguá
Reginaldo Miranda
Enganam-se aqueles que pensam
terem sido poucos os portugueses a colonizar o sertão piauiense. Na verdade, no
último quartel do século XVII, quando iniciou-se propriamente a colonização de
nosso território, até a instalação da capitania em 1759, período que podemos
dizer pioneiro, muitos foram os jovens portugueses aqui estabelecidos.
Nesse espaço de pouco mais de
oitenta anos era o Piauí mais atraente porque constituía-se uma fronteira em
expansão, com extensas áreas e vales férteis inabitados, à espera da ação
colonizadora, assim, um eldorado para o jovem lavrador do norte de Portugal que
desejasse fazer fortuna no Novo Mundo. E naqueles dias era sonho de consumo de
quaisquer deles virem fazer a vida na colônia, fugindo aos acanhados limites do
minifúndio reinol. Para eles era fácil fazer essa travessia porque em pouco
tempo já não tinha quem não tivesse parentes ou vizinhos do outro lado do
Oceano. Vieram famílias inteiras e muitos dos que aqui estavam estabelecidos
costumavam mandar buscar sobrinhos para se estabelecerem na nova terra, o que é
fácil perceber-se com a leitura das notas que nos últimos dias vimos
divulgando. Ao contrário, o jovem nascido na costa litorânea de Pernambuco,
Bahia ou Maranhão veio em número reduzidíssimo, porque ali já herdara as terras
e negócios de seus ancestrais. O que estamos afirmando é baseado em pesquisa de
campo, em dados técnicos difíceis de serem refutados.
É o caso de Manoel Álvares de
Souza, natural do lugar do Couto, freguesia de Santo André de Molares, termo da
vila de Cerolico de Basto, comarca de Guimarães, arcebispado de Braga, no norte
de Portugal, onde entrou pela vida no ano de 1666.
Filho legítimo de Domingos
Gonçalves e Margarida Gaspar, naturais e moradores no indicado lugar; neto
paterno de Pedro Gonçalves, natural e morador na referida freguesia de Molares,
lugar de Fonte Coberta, e sua mulher Izabel Domingues, natural do lugar de
Lordelo, freguesia de Santa Maria de Veade, do mesmo arcebispado; neto materno
de Gaspar Alves, natural e morador na freguesia de Molares e sua mulher
Domingas Pires, natural do dito lugar de Lordelo.
A infância e adolescência viveu
na terra natal, alternando os estudos regulares com o trabalho na propriedade
paterna. No entanto, mal completou a idade de vinte anos, fez as malas, pegou
um navio e veio para a Bahia, a chamado de um primo paterno, o capitão-mor
Baltazar Carvalho da Cunha(1º), que ali desde muito se encontrava estabelecido
no comércio.
Porém, pouco tempo demorou na
cidade da Bahia, logo passando à freguesia de São Francisco da Barra do Rio
Grande do Sul, onde, por influência do rico parente, foi investido na patente
de capitão-mor e fixou residência no sertão de Parnaguá, daquele termo,
combatendo índios e conquistando terras.
Dessa época, um feito que insere
seu nome nos anais de nossa história foi o devassamento e conquista do vale do
rio Paraim, no verão de 1688, combatendo as tribos indígenas e o povoando com
diversas fazendas de gado vacum, para si e para o seu primo e sócio, Baltazar
Carvalho da Cunha, capitão-mor da Bahia, que o orientou e o ajudou no
financiamento da campanha (AHU. Cx. 18. Maranhão. Doc. 1868).
Da mesma forma, foi o
conquistador definitivo do Riacho Frio, de alguns outros afluentes das
cabeceiras do rio Gurgueia e da Lagoa de Parnaguá, consolidando, assim, a
anterior ação de Francisco Dias de Siqueira nesse último lugar; de toda sorte,
instalando diversas fazendas em todos esses locais, grande parte para o
indicado parente. É dessa conquista que nasce a povoação de Parnaguá, à margem
da referida lagoa e a família desses pioneiros ali permanece na abastança do
cultivo da terra e na gestão de grandes latifúndios, com numeroso rebanho
bovino e cavalar(AHU. Cx. 18. Maranhão. Docs. 1869 e 1870).
No entanto, um fato curioso é que
esse destemido militar e rico fazendeiro, pioneiro no devassamento territorial
e na fundação de Parnaguá ou Pernagoá, como então se chamava, pleiteou e
conseguiu ser Familiar do Santo Ofício. Desta forma, o temido Tribunal da
Inquisição bota suas garras neste longínquo e isolado lugar nascente do Sertão
de Dentro. E por que um homem deste, vivendo em lugar remoto desejaria ser Familiar
do Santo Ofício? Provavelmente, para se afirmar na hierarquia social, onde um
privilégio deste assume um capital simbólico fundamental para auferir outros
privilégios e, assim, ser reconhecido na sociedade estratificadora do Antigo
Regime. É que os critérios excludentes de admissão só permitiam esses
privilégios àqueles que provassem pureza de sangue, bom procedimento,
capacidade, reputação, discrição e modo abastado de viver. Tudo isso era
investigado no lugar de nascença e no domicílio atual, através de rígida,
criteriosa e burocrática investigação, por comissários peritos e doutos na
engenhosa e indigesta arte de colher ou dissipar suspeitas. Nosso biografado
passou no teste.
Esse fato ocorreu em 1701, já ele
rico, realizado, ainda solteiro, capitão-mor do Rio Grande do Sul, assistente
no sertão de Parnaguá, freguesia de São Francisco, assim foi qualificado,
quando formula pleito para servir à Santa Inquisição no cargo de familiar,
dizendo ter todos os requisitos que o fazem digno de tal ocupação.
Dando sequência ao rígido
processo investigatório, de que nos referimos a pouco, em 20 de abril de 1701,
nas igrejas paroquiais de Santo André de Molares e de Lordelo, ambas
pertencentes à vila de Celorico de Basto, foram ouvidas doze testemunhas,
começando pelo lavrador Domingos Francisco, de pouco mais de oitenta anos de
idade. Disse ele, grosso modo, que o biografado era natural do lugar do Couto,
desta freguesia, e dela fora sendo moço de vinte anos, pouco mais ou menos,
para o Estado do Brasil, onde dizem era ela morador; disse que seus pais e avós
viviam muito limpamente de suas respectivas fazendas; que ele, seus pais e avós
são legítimos cristãos velhos, limpos de sangue, sem fama em contrário; as
demais testemunhas pouco acrescentaram, apenas corroborando esse depoimento,
acrescentando a testemunha Gonçalo João, de setenta e cinco anos de idade, que
o lugar do Couto e o de Lordelo são contíguos, existindo entre eles apenas um
ribeiro.
Em 12 de julho do mesmo ano de
1701, foram ouvidas em Olinda, Pernambuco, mais cinco testemunhas, para dizerem
sobre a vida do pretendente na Colônia. Seguem os nomes, qualificações e resumo
de seus depoimentos:
1. Pe. Simão de Loronha e Menezes, sacerdote
do hábito de São Pedro, natural da freguesia de São Salvador de Ramalde,
Bispado do Porto, e de presente morador na Missão do gentio Mascaruy, freguesia
de Nossa Senhora da Conceição dos Rodelas, do Bispado de Pernambuco, 40 anos de
idade, pouco mais ou menos: disse que conhece Manoel Álvares de Souza, capitão-mor
do Rio Grande do Sul e sabe ser natural de Basto do arcebispado de Braga, e de
presente morador em Parnaguá, freguesia de São Francisco do Rio Grande do Sul,
deste Bispado; e a razão que tem de seu conhecimento é a sete anos a esta
parte, e conversar com ele muitas vezes, e estar com ele em sua casa; disse que
ele é pessoa de bons procedimentos, vida e costumes, e tem muita prudência e
capacidade para poder ser encarregado de negócio de importância e segredo, e
que de todos dará boa conta e satisfação de si, e que vive limpa e
abastadamente de bens, e sabe ler e escrever e terá idade de 30 anos, pouco
mais ou menos; que é moço solteiro, nunca foi casado nem tem filhos;
2. Gaspar do Reis, capitão maior de Nossa
Senhora da Conceição do Rodelas, homem casado, natural de Vila Nova de Foz Côa,
Bispado de Lamego, e de presente morador na freguesia de N. Sra. da Conceição
do Rodelas, 51 anos de idade, pouco mais ou menos: disse que conhece Manoel
Álvares de Sousa, natural das partes do arcebispado de Braga, e de presente é
morador em Parnaguá, freguesia de São Francisco da Barra do Rio Grande do Sul,
deste Bispado; e a razão que tem deste conhecimento é por tratar com eles
muitas vezes de treze para quatorze anos, a esta parte; terá ele cerca de 35
anos;
3. Coronel Bernardo de Carvalho, cristão
velho, homem casado, natural da Ribeira de Pena do arcebispado de Braga, e de
presente morador no rio de São Francisco da freguesia de N. Sra. da Conceição
do Rodelas a dezesseis anos a esta parte, de idade que disse ser de 35 anos,
pouco mais ou menos, e que vive de suas fazendas: disse que conhece Manuel
Álvares de Sousa, capitão-mor do Rio Grande do Sul, e sabe ser natural de perto
de Lamego, arcebispado de Braga, e de presente morador no sertão de Parnaguá; e
razão que tem de seu conhecimento é por se tratarem na correspondência a sete
anos a esta parte; disse que o mesmo nunca foi casado, mas sabe por ouvir dizer
que o mesmo tem uma filha natural havida com uma índia cristã;
4. O Ajudante Sebastião Pereira Vilares,
cristão, velho, solteiro, natural do arcebispado de Braga, freguesia de São
Paio da Ponta do Prado, e de presente no sertão do Piauí, freguesia de N. Sra
da Vitória, a onze anos a esta parte e vive de sua agência, 33 anos de idade:
disse que o conhece por estar com ele de 5 anos a esta parte; confirmou a
existência da filha havida com uma índia cristã;
5. Pe. Amaro Barbosa, sacerdote do hábito de
São Pedro, missionário da aldeia Caratihu, do sertão do Piauí, natural da vila
de Viana, arcebispado de Braga, de presente morador na freguesia de N. Sra. da
Vitória, de sete anos a esta parte, 41 anos de idade: disse tratar com ele de 5 anos a esta parte;
que ele tem 35 anos, pouco mais ou menos.
E, assim, terminam as diligências
sendo o pretendendo aprovado e, certamente, exercendo o seu ofício sem maiores
molestamentos aos seus contemporâneos. Esses familiares eram agentes
inquisitoriais, pertencentes a uma categoria de cargos ocupados por leigos, com
a função de denunciar os desviantes da fé e aqueles que simulavam fazer parte
do clero ou própria Inquisição, como o caso de acusação feita anos antes contra
o padre Miguel de Carvalho, da freguesia do Rodelas. Na colônia, essa função se
restringia à vigilância e a execução de tarefas determinadas pelos comissários,
entre as quais a prisão de infratores que deveriam ser por ele conduzidos até o
porto mais próximo de embarque para Lisboa.
Faleceu em data incerta, no
primeiro quartel do século XVIII, tendo encetado invejável carreira militar e
deixando larga folha de serviços prestados ao Estado, sendo o principal
conquistador do Paraim e baluarte na fundação de Parnaguá. Seria interessante
saber-se se seu inventário encontra-se arquivado no Arquivo Público da Bahia,
de cuja leitura pode-se esclarecer quem foram os herdeiros de seu
patrimônio. Porém, se deixou apenas uma
filha, aquela havida com uma índia cristã, de que informaram as testemunhas,
foi esta a senhora Maria Álvares de Sousa, moradora em Parnaguá, que em 26 de
fevereiro de 1722, recebeu sesmaria na barra o rio Paraim, de três léguas de
terra em quadra, em face de serviços prestados por seu falecido genitor. Para a
registro da história coligimos essas notas (AHU. Maranhão. Cx 18. Doc. 1870).
* A imagem que ilustra a matéria
é uma vista aérea da cidade e lagoa de Parnaguá.
** Esse processo de habilitação
ao Santo Ofício, comprova que em 1701 os sertões de Parnaguá ainda estão
formalmente anexados à freguesia de São Francisco da Barra do Rio Grande do
Sul, hoje cidade da Barra, na Bahia, então de Pernambuco, só passando ao Piauí
no ano seguinte.
*** A qualificação do coronel
Bernardo de Carvalho, como testemunha, comprova que ele era filho do concelho
de Ribeira de Pena, terra dos padres Miguel e Tomé de Carvalho, seus primos, e
não de Vila Pouca de Aguiar, como queria o Pe. Cláudio Melo.
**** REGINALDO MIRANDA, autor do
ensaio biográfico, é membro da Academia
Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Piauiense e
conselheiro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.
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