MODERNISMO BRASILEIRO: A DIMENSÃO
QUE LHE FALTOU (2)
Cunha e Silva Filho
3. AS CONTRADIÇÕES: O NACIONAL E
O ESTRANGEIRO.
Nenhum movimento cultural é autônomo nas
suas implicações e procedimentos. Portanto, quando reclamamos para o nosso caso
uma literatura que reflita o nosso povo e a nossa nação, tal premissa se exime
de ser absoluta em si. Não há essa ideia de pureza e de primitivismo quando
delimitamos nossa definição de nacional. Exatamente porque no nacional está
implícita a tradição literária por via da qual se transmitem as técnicas e
formas literárias do exterior.
É preciso estabelecer com critério o
conceito de nacional sem o preconceito xenófobo. Lembre-se aqui a oportuna
página de Machado de Assis contida no ensaio “Instinto de nacionalidade: O que
de deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no
tempo e no espaço.[3] Sendo o Brasil
um país de cultura transplantada e, depois, modificada a custo de variantes
mesológicas, étnicas e culturais, a formação de nosso patrimônio literário
esteve constantemente recebendo o influxo externo. Por conseguinte, o que aqui
se formou foi acompanhado sempre do contributo de fora, primeiro pela
influência portuguesa, depois, pela francesa e inglesa, sobretudo desta última
ainda vigorante. Nosso primeiros homens ligados à cultura tiveram formação
europeia e de lá nos trouxeram as modas literárias e as doutrinas filosóficas
correntes.
Quando pleiteamos uma literatura
nacional não estamos somente nos referindo à temática local, mas também a
fatores intrínsecos que nos enformaram literariamente, dos quais, entretanto,
vamos pouco a pouco nos libertando por força de uma realidade nova.
A escrita literária não se originou de um
grau zero. Ela se insere no circuito de experiências e conquistas da tradição
ocidental. Não fosse por isso, não teríamos nunca entre nós a contribuição de
técnicas e descobertas no campo da poesia, da ficção e da teoria que já foram
trabalhadas lá fora e, por via indireta, dos livros estrangeiros ou nacionais a
que os autores locais tiveram acesso.
Recusar simplesmente a
contribuição alienígena é praticar um ato de insensatez intelectual, sobretudo
agora que temos à nossa volta a pressão do conhecimento globalizado via
Internet.
A grande incongruência que existe entre o
nacional e o estrangeiro se coloca quando decorre no âmbito das instituições
sociais e políticas, conforme se deu em nosso pais, onde o pensamento liberal
de estofo europeu se chocava com o sistema escravocrata do Império ou com
outros procedimentos de convivência social avançada apenas para inglês ver. Da
mesma sorte, em outros setores da vida social, modas, hábitos, lazer, leituras
etc.
4. O POVO COMO OBJETVO DE
PESQUISA, MAS NÃO COMO SUJEITO PARTICIPATIVO
Se o Modernismo brasileiro pretendia
aproximar a realidade da literatura, não se compreende como, na primeira fase,
a iconoclasta, ele tenha se constituído do ponto de vista de recepção do
leitor, em movimento visceralmente elitista, principalmente no tratamento da
linguagem poética ou ficcional. Neste sentido, o Modernismo deu as costas para
o povo, que não leu e ainda não lê a sua produção. Estamos pensando em obras
seminais à compreensão desse movimento, como Pauliceia desvairada (1922),
Macunaíma (1928), Pau-Brasil (1929), Memórias sentimentais de Joao Miramar
(1924).
É bem provável que essas obras como
outras apenas tenham despertado certa curiosidade no povo, porém não a
iniciativa de efetivamente realizarem sua leituras, com exceção, nos parece,
dos autores da ficção de 30, donos de uma literatura em geral sem hermetismos
formais e, por isso, mais acessíveis à média da população. Haja vista a obra de
Jorge Amado (1912-2001).
Se o movimento procurou a todo custo fazer
um balanço das potencialidades do homem brasileiro, no sentido até documental,
nada indica que ele tenha se afastado de suas vinculações com a burguesia de
então, pelo menos nos seus primeiros momentos. Quem iria dar efetiva
contribuição, pelo menos como propósito de transformar o povo em matéria
ficcional e, além do mais, como voz narrativa seria um contista, surgido na
década de 1960 - João Antônio.[4]
Na sua ficção deu ele voz a seus
personagens, a maioria do submundo do eixo Rio-São Paulo. Porém, tanto os
modernistas quanto João Antônio, e bem assim os ficcionistas da geração de 30,
que inauguram o ciclo do de romances do Nordeste, iriam se defrontar com um
impasse inescapável à condição do intelectual que se vê enredado no dilema de
difícil superação: como lidar com uma literatura que fixa e movimenta uma
galeria de despossuídos que jamais lerão seus livros e não têm o nível
suficiente de escolaridade e de leitura para se verem retratados nessa ficção
marginal?
Na época do surgimento do romance
brasileiro, a partir do Romantismo, o público leitor pertencia em geral à
classe burguesa. Por outro lado, não se poderia também recriminar um
ficcionista à altura dos anos 1960, 1970 e 1980 – caso de João Antônio e de
outros autores da sua época - por fazer uma literatura centrada primordialmente
nas camadas desfavorecidas da população brasileira, assim como nos temas em
torno da vida de malandros (figuras que fizeram do contista um dos seus mais
hábeis intérpretes na literatura brasileira moderna), marginais, prostitutas,
traficantes, não obstante ser a ficção joãontoniana de alta qualidade
literária.
Assim como não poderíamos reprovar o fato
de que ele se beneficiaria comercialmente dessa temática populista, uma vez que
a obra ficcional produzida pelo mercado transforma-se em produto de consumo e,
por vezes, faz de seu criador, se este provém de classe menos favorecida
(exemplo também de João Antônio) um instrumento do jogo capitalista, gerador de
lucro. Da parte da função de escritor, a meu juízo, não houve apelação ou
expediente espúrio de explorar temas que lhe granjeassem ascensão social ou
sucesso econômico.
O escritor como intelectual é caudatário
do sistema que ele próprio repudia. Jorge Amado, por exemplo, foi um escritor
que, em determinada fase de sua produção literária, foi duramente criticado por
alguns críticos por fazer algumas obras para deleite do turismo e não por sua
qualidade literária. Contudo, essa crítica, sob pena de se tornar injusta, não
poderia estender seu julgamento à obra geral dele. No exemplo de João Antônio,
guardadas as diferenças com Jorge Amado, o nível estético de sua ficção não
sofreu nenhuma queda.
O contista não se sustentou tão-somente com
a temática dos despossuídos, já que ainda com boa qualidade literária passou a
explorar temas da classe média, da qual era um crítico feroz e demolidor, ainda
que, aparentemente uma contradição, a sua nova condição social o colocasse na
classe média. Esse, na verdade, é o dilema de qualquer escritor que tenha vindo
dos estratos mais modestos da pirâmide social. Não importa, burguês ou não
burguês, o escritor será um porta-voz, seja das classes mais altas, seja das
médias e das humildes, Uma coisa têm os escritores em comum no seu ofício: sua
arma é a linguagem, não a baioneta.(Continua)
[3] ASSIS, Machado de. Instinto
de Nacionalidade. In: Obra Completa. p. 804. V. III.
[4] O autor deste ensaio
defendeu, em 2002, uma Tese de Doutorado sobre João Antônio abordando
primacialmente a figura do malandro no contista paulista. Título da Tese: O
conto de João Antônio: na raia da malandragem. Faculdade de Letras, Rio de
Janeiro: UFRJ, 2002, 349 p. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.
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