Raimundo Lima e Elmar Carvalho |
Sr. Bogó, quentando sol |
Expedição a Batalha
Elmar Carvalho
Todas as fotos são da autoria de Andrey Lima
Na sexta-feira, na caminhada da Raul Lopes, o magistrado
inativo Raimundo de Sousa Lima anunciou que no sábado iria a Batalha, sua terra
natal, embora desde os dez anos tenha passado a morar na cidade de Piracuruca,
com a finalidade de rever o seu pago natal, onde morara em sua infância e
meninice. Perguntei-lhe a que horas sairia, tendo ele me respondido que às
quatro. Perguntou-me se eu desejava ir. Incontinenti, sem vacilações, disse que
sim. Às quatro horas, na forma combinada, ele me pegou no condomínio onde moro,
e seguimos viagem, em companhia do médico Andrey Lima, seu filho, que já
conheço de outras viagens e conversas.
Antes das oito horas, entramos na cidade de Batalha, onde já
nos esperava o Luís Basílio, que nos guiaria. O início do local de nosso
destino fica a uns doze quilômetros da zona urbana, nas proximidades da estrada
para Piracuruca. Em certo ponto deixamos a estrada asfaltada, e pegamos uma
vicinal bem rústica, que apenas em alguns trechos parecia ter sido beneficiada
com a colocação de tênue camada de piçarra, mas que, apesar disso, não tinha as
armadilhas de atoleiros, ao menos nesta época de seca acentuada.
Até chegarmos ao ponto final de nosso trajeto, passamos por
diferentes paisagens ou mesmo pequenos e diversificados ecossistemas, se assim
me posso exprimir. O Luís, espontaneamente ou indagado por nós, ia indicando
essas diferenças, com as classificações e denominações regionais. Algumas eu
identifiquei, sem a sua ajuda de expert, pela minha vivência ou pelo meu
escasso conhecimento livresco. O certo é que num percurso de poucos
quilômetros, vimos cerrado ou chapada, caatinga ou sertão, este em tudo
semelhante ao que é visto nas fotografias do cangaceiro Lampião.
Em determinado ponto, passamos por uma floresta de árvores de
grande porte e de vegetação mais fechada. Perto desta, havia uma outra, em que
as árvores eram ainda de mais avantajada dimensão e de folhagens mais densas, de modo que, na minha ótica de leigo, me pareceu resquício ou vestígio de uma possível Mata
Atlântica, se é que não estou sendo exagerado ou muito imaginativo em minha
suposição.
Vimos paisagens planas, povoadas de inúmeras carnaubeiras,
quase um perfeito tabuleiro, em que se viam até as corcovas de cupins, como nos
descampados de Campo Maior, mas também encontramos morros e serrotes, com vales
e abismos, e os socavões de suas encostas. Apontando para um desses brocotós,
que muitos diriam cafundó ou sertões dos confins, o Luís disse que nele ainda
existiam animais ariscos, como onças, caititus, mocós e cutias.
Adiante, numa de nossas paradas, soubemos que uma dessas
onças, parece que uma suçuarana, andava devorando alguns bodes de fazendas da
vizinhança. O morador nos explicou que a fera retirava o couro, para, creio,
melhor comer a carne. Em face dessa notícia, o Luís Basílio e o Raimundo Lima
recordaram que um velho morador da região, conhecido como Manteiga, deficiente
de um dos braços, enfrentou um desses jaguares, sem uso de arma de fogo, e
conseguiu vencê-lo.
Manteiga fora a uma caçada com seu cachorro, muito eficiente
em seu mister. Perto da encruzilhada, o cão começou a acuar algum animal, perto
de uma arredondada moita de cocotinha. O caçador foi verificar o que acontecia,
quando, de súbito, uma onça, com a velocidade de um raio, deu um salto para
atingi-lo. Manteiga tentou esquivar-se, e conseguiu furar o bicho com uma faca
do tipo peixeira. Embora ferida, a onça, em seu bote feroz, conseguiu dar-lhe
um forte golpe, que lhe fez soltar a faca. Veio para cima do caçador, que fora
cair a uma certa distância.
O cão, que era valente e veloz, partiu em defesa de
seu dono, e conseguiu morder a garganta do feroz adversário, que veio a morrer,
o que comprova a lealdade e brio desse cachorro, cujo nome era Leão. Com efeito,
esse mastim, de cor vermelha, muito grande e forte, fazia jus a seu
aristocrático nome, posto que era um verdadeiro leão. E Manteiga provou que
também era muito destemido, robusto e lutador, e, portanto, não era nenhuma
“manteiga derretida”.
O caçador foi buscar um burro para levar a fera morta, como
um troféu e para lhe tirar o couro, que tinha muito valor comercial. Cobriu o
rosto do muar com um saco de estopa, pois é fato sabido que essa alimária tem
muito medo de onça. Contudo, mais adiante, Manteiga resolveu retirar a “careta”
do burro. Este, então, olhando para os lados viu a carcaça da onça,
assombrou-se e disparou mato adentro, em “desabalada, alada carreira quase voo”,
derrubando a carga que conduzia. Só reapareceu, ainda desconfiado, sete dias
depois. Embora esse relato pareça estória de caçador, Luís Basílio, como no
poema de Gonçalves Dias, garante ser a pura expressão da verdade: "Meninos,
eu vi!".
No percurso dessa viagem saudosista, que por isso mesmo era
também uma viagem no tempo, visitamos o chamado olho-d’água de fora. Ora,
presumi, se havia o olho-d’água de fora, me era lícito supor que haveria o de
dentro; mas não havia, pelo menos não com esse nome. Mas existia um outro, com
outro nome, sobre o qual mais adiante falarei.
O Raimundo nos contou que em sua meninice, não sei se também
de peraltice, passava perto do dito olho-d’água de fora, em demanda de uma
escola, cuja lembrança, com as devidas elaborações imaginativas e fictícias,
aproveitou na fábula do Zé Trunfinha, contida no seu livro A menina do Bico de
Ouro; a menina do bico de ouro, de nome Beatrice, dita Titice, por sua vez foi
inspirada numa neta do Raimundo, filha do doutor Andrey, de inteligência tão
admirável quanto precoce.
Olhamos os seus dois principais minadouros ou vertentes, no
entorno dos quais se estende uma várzea, com imponentes e belos buritizeiros e
graciosas e elegantes plantas aquáticas, muitas das quais trepadeiras, que se
encarapitaram nos grossos troncos dessa palmeira. Vimos alguns cachos de
buritis. Esse fruto, com as escamas de sua casca cor de bronze, um bronze
avermelhado, parece uma escultura minimalista de um esmerado renascentista; de
sua popa são produzidos um doce e um suco deliciosos.
Nesse brejo paradisíaco e quase intocado, esquecido nos
confins desse quase ermo, em que se ouvem apenas as notas musicais de cigarras
e aves canoras, estavam um jumento e uma mulher a recolher água, que só não me
fizeram recordar a passagem bíblica da samaritana, com o seu cântaro, à beira
de um poço, porque as vasilhas onde a rurícola colocava a água eram de
plástico.
Havia um leito de areia, por onde nas grandes chuvas se forma
um riacho. Agora, era apenas um rio seco, um rio de areia, um rio exaurido. O
Luís nos relatou que outrora os olhos-d’água eram mais potentes, vertiam mais
água. Todavia, agora, eram apenas aquele fiapo de líquido, que mal escorria.
Talvez vários fatores tenham concorrido para esse esgotamento: seca prolongada,
assoreamento dos minadouros, desmatamentos no entorno, perfuração de poços
tubulares...
Dando continuidade ao roteiro de nosso périplo saudosista, sentimental
e turístico, fomos à morada do senhor Domingos Antônio da Silva, cujo apelido
carinhoso e familiar é Jogó, que precisei anotar, porque às vezes o pronunciava
como Bogó, outras, como Bobó; mas bogó é uma vasilha de couro e bobó, um tipo
de alimento. E seu Domingos, o nosso Bogó, é um bom velhinho, que encontramos
no quintal da casa, quentando sol perto de uma espécie de cabana. No e-mail, em
que me foram enviadas as fotografias que documentam o nosso passeio, dele disse
o Andrey, que se consagrou como habilidoso fotógrafo de nossa expedição:
“Pudemos ali, como numa viagem ao
tempo, ver homens e mulheres vivendo exatamente da mesma maneira como os seus
ancestrais, como o Sr. Jogó, viúvo, com 86 anos e um casal de filhos, que se
recusaram a deixá-lo para procurarem vida mais amena, longe daquela terra seca
pelo sol quente, que para ali persistirem precisaram superar os desafios
diários do sertão! Brava gente!”
Noutro trecho do e-mail, disse Andrey sobre seu pai, que em
sua meninice percorreu essa paragem bucólica, ainda hoje imersa em solidão e
abandono: “Tal cenário de uma vida simples de criança, mas pura, serviram de
alicerce para o desenvolvimento da sanidade mental e capacidade de sonhar dessa
figura humana única – Raimundo de Sousa Lima”.
Perto de onde a estrada se trifurcava, o Luís nos contou que,
muitos anos atrás, próximo a esse local, ele e um companheiro viram, quando o
sol já descambava no horizonte, ao longe, o vulto duma pessoa. Quando chegaram
ao ponto em que deveriam encontrar esse caminheiro solitário, não mais o viram.
Olharam para todos os lados, mas não o localizaram.
Embora procurassem, sequer viram as suas pegadas. De repente,
ouviram um pavoroso assobio, muito forte, fino, sibilante e estridente, que jamais
pareceria emitido por um ser humano. Contava-se que nesse local de medo e
arrepios apareciam assombrações e almas penadas. Nessa encruzilhada, muitos
viajantes incautos se confundiam, e escolhiam o caminho errado, um caminho de
perdição e incertezas.
Nos arredores desse místico e mítico local, existiu, muitos
anos atrás, um barbatão afamado, arisco, veloz e valente, que nenhum vaqueiro,
por melhor que fosse, conseguia pegar. Muitos tinham a certeza de que ele fora
enfeitiçado por algum mandingueiro da região. Os nativos não tinham dúvida em
afirmar que ele era um touro encabojado, que tinha pacto com o capiroto.
Vi os escombros de uma casa de pedra, centenária.
Alguns pedaços de parede da velha tapera ainda podiam ser vistos, mostrando as
junções das pedras lavradas. Talvez tenha sido construída no tempo do
cativeiro, o que mais concorreria para a formação de estórias fantásticas. Não
sei se é considerada como mal-assombrada. Nos seus áureos tempos quiçá
parecesse impregnada de eternidade, como a casa avoenga de Manuel Bandeira.
Contudo, agora é apenas uma tapera, impregnada da fugacidade das coisas frágeis
e perecíveis.
Fomos ao outro manancial, que alguns chamam de olho-d’água do
Padre. Tendo ficado curioso sobre essa denominação, que é a mesma de uma fonte
nas cercanias de Piracuruca, que outrora abastecia essa antiga e histórica urbe,
e que ficava num imóvel que pertencera ao padre Máximo Martins Ferreira (mas
que atualmente é propriedade de dona Francisca Vidal de Lima, mãe do nosso
expedicionário Raimundo Lima), perguntei sobre quem seria esse vigário.
Me foi informado que o “padre” não era padre e sequer fora
seminarista. Deram-lhe essa alcunha afetiva e familiar, porque esse homem era calmo,
um tanto introspectivo e calado, meio sisudo, como se fora um carmelengo no momento
da votação do conclave para a escolha de novo papa. Seu nome é Francisco
Ribeiro de Melo, e ele é primo do bravo Raimundo, comandante de nossa aguerrida
força expedicionária, e é o dono da Fazenda Expedição.
O manancial pertence a essa velha fazenda, ponto final de
nossa incursão turística e saudosista. Era a fonte principal de um grande e
verdejante brejo, cheio de enormes árvores frondosas, de exuberante buritizal,
de imensas mangueiras, por entre as quais corria o córrego, por cima de pedras
esverdeadas e musgosas, a formar pequenas poças ou piscinas. Da sombra
refrescante dessas árvores, víamos a encosta ensolarada de um morro, ornada de
grandes pedras, que o capricho da natureza ali colocou, para formar uma espécie
de Éden, como se fora um paisagismo de Burle Marx.
Quando eu escalava essas pedras e nelas me equilibrava com
invulgar talento, uma manga me atingiu o alto da cabeça. Senti o impacto e a
dor, que não foi tanta assim e nem me provocou hematoma, graças ao fato de que
não era grande, mas um tipo de manguita, que na localidade é conhecida como
manga do olho-d’aguinha. Ao olhar para uma jaqueira que havia perto, me
consolei, porque fora apenas uma fruta pequena que me acertara, e não uma
enorme, caraquenta e pesada jaca, que bem me poderia ter levado a nocaute.
Garantiu-me o jovem Andrey, como se fora uma recompensa ou
prêmio, que uma manga, assim como os raios, não cai mais de uma vez na mesma
cabeça; e não poderia cair, porquanto já estava no chão. Mesmo assim, como ato
de vingança, a comi. E devo dizer que foi a mais deliciosa manga que jamais degustei
em toda a minha vida.
A seguir fizemos a viagem de regresso, sem outros incidentes
dignos de nota, ao menos no entendimento deste escrivão da armada
expedicionária ao pago natal de Raimundo de Sousa Lima, figura ímpar com bem
asseverou seu filho.
Prezado amigo Elmar,
ResponderExcluirParabéns por mais uma bela crônica, onde são descritos com peculiar sensibilidade o cotidiano da nossa gente, a beleza das nossas paisagens e as figuras pitorescas da região.
Abraço,
Ben-Hur Sampaio
Que bom, amigo Ben-Hur, ler um comentário como esse seu, que além de estimulante é revigorante.
ResponderExcluirAbraço,
Elmar
Muito bom o texto, Dr. Elmar. Conseguiu expressar de forma poética sensações reais durante nossa expedição! Abraço!
ResponderExcluirMuito obrigado, caro Dr. Andrey.
ResponderExcluirEssas belas palavras, vindas de uma inteligência do calibre da sua me deixa ainda mais desvanecido.
Abraço,
Elmar
Caríssimo Poeta, o nome da Fazenda visitada não poderia ter sido mais apropriado. O que vocês fizeram foi uma expedição também, sem esquecerem de levar junto o escrivão para relatar a epopeia.
ResponderExcluirE levamos também o fotógrafo oficial para documentar tudo, que outro não foi senão o bravo doutor Andrey.
ResponderExcluirdescrição de uma expedição rumo a infância dos protagonistas e que me fez relembrar também minha meninice na terra de meus ancestrais nos socavões de Altos de João de Paiva. adorei a descritiva do aventureiros. senti me um personagem nesta viagem aventureira e saudosista.
ResponderExcluirparabéns Dr. Elmar pela bela crônica cônica discursiva e descritiva. adorei, sobretudo pela episódio que marcou o passeio: o tiro ao alvo da manga manguita!
ResponderExcluirCaro amigo Walter,
ResponderExcluirDe certa forma, quase duas ou mais décadas atrás, você e eu fizemos um pouco desse percurso, quando fomos até Esperantina (não me lembro se chegamos a Luzilândia), quando fomos a um evento literário.
Obrigado por suas palavras elogiosas à nossa crônica.
Abraço,
Elmar