A
revolta dos tamancos
Pádua Marques
Escritor e jornalista
Ninguém na vila de São
João da Parnaíba esperava por aquilo naquele dia 10 de setembro de 1829.
Caboclos, negros desocupados, negras vendedoras de frutas e verduras,
embarcadiços, viajantes, donos de pequenos pontos de comércio, enfim toda sorte
de gente ficou por toda a manhã em frente à casa do quase morto coronel
Simplício Dias da Silva, entre o largo da igreja da Graça e a rua Grande,
batendo um tamanco no outro, gritando nome feio e dando vaias.
Gente vinda de Ilha
Grande de Santa Isabel, Araioses, Tutoia, Tucuns, Testa Branca e dos Campos, da
Parnaíba toda, cobrando justiça pela prisão e açoite na véspera, de duas negras
vendedoras de muricis e goiabas que estavam falando alto e arrastando os
tamancos, justo na calçada e embaixo da janela do quarto, onde estava acamado e
com os dias contados, o dono da Parnaíba. Aquele reco pra cá e reco pra lá nas
pedras não deixava Simplício Dias pregar o olho.
A notícia de que as duas
negras estavam no calabouço da casa e levando de meia em meia hora dúzias e
mais dúzias de bolo de palmatória fez vir gente de tudo quanto foi lugar.
Diante da confusão e do clamor da multidão os milicianos foram chamados e cada
um em seu cavalo tentou dispersar e acabar com o princípio de tumulto, que se
não tivesse a mão da lei acabaria em banho de sangue. Foram chegando e
desferindo golpes de baionetas e de chicotes, pegasse em quem pegasse. Os
principais da vila foram chamados ao senado da Câmara, mas pouco ou quase nada
puderam fazer.
Até as senhoras ricas e
mulheres de juízes, vereadores, religiosas como Esmeralda Freitas Basto, a
inglesa Dorothy Cunnis, mulher do capitão de navio Sinclair Cunnis e Tertulina
Correa Prado, tia do advogado e afilhado de Simplício Dias, Bernardo Vieira. No
largo da casa de morada, sol a pino, era negro dando no meio da canela. Tudo
por causa das duas negras tempereiras que tiveram os tabuleiros revirados e os
tamancos arrancados dos pés, quebrados e jogados no meio da rua. Falta de
respeito aquilo, incomodar o coronel já no leito de morte?
No meio da manhã a
multidão estava dando na beira do rio Igaraçu. Quem tentava descer das
embarcações era retirado nos braços e obrigado a subir o barranco já descalço e
de tamancos nas mãos. E tudo aquilo foi coisa de dois dos piores indivíduos que
a vila da Parnaíba tinha até então, Coré e Papudo. Dois vagabundos de entre o
cais e o largo da igreja! O primeiro, dito e batizado com o nome de Coriolano,
era, diziam, ser irmão de Simplício Dias por parte de pai. Beberrão, nem negro
nem branco, gabola, mas sempre que alguém ia lhe dar cobro puxava na frente o
nome de Domingos Dias da Silva.
Papudo, o outro,
vagabundo, arruaceiro, perdido em jogo de azar, família ignorada, andava de
cara pra cima e de casa em casa à procura de quem desse um prato de comida ou
roupa usada, uma gandola de soldado que fosse o que acabava trocando por alguns
tostões ou aguardente nas proximidades da igreja dos pretos. Ninguém o tinha em
boa conta porque quando não tinha o que comer se danava a pegar no alheio na
rua entre a casa de Simplício Dias, que ficava em frente a um cemitério e a
igreja da Graça. Em troca de alguns tostões de quem desembarcava de Tutoia, se
dava a beber de uma vez só, jarros e mais jarros de água do rio Igaraçu. Nome
de batismo e de onde veio era coisa que nunca ninguém soube.
Vieram dizer ao chefe da
milícia que do jeito que estava a situação se agravando podia ser necessário
disparar alguns tiros de bacamarte, mas ele não achou conveniente. Porque de
espada e de chicote não dera vencimento!
Chegasse aos ouvidos de
dom Pedro I no Rio de Janeiro, notícia de um massacre na vila da Parnaíba, tudo
o que fez pela independência, há sete anos, iria por água abaixo. Mais de
duzentas pessoas espalhadas até aonde a vista dava batendo um pé de tamanco no
outro. Os negros carregadores de água acharam de atear fogo em barris velhos e
por isso acabou provocando uma briga.
Na casa de Simplício Dias
as duas negras tempereiras estavam nos fundos trancafiadas e teve quem dissesse
ter visto as palmas das mãos delas estavam azuis de tanto levar bolo de
palmatória! Mas era tudo conversa! Conversa pra aumentar ainda mais a revolta
de toda aquela gente. Por volta do meio do dia, quando as canoas vindas do
Maranhão voltavam pra casa, sem ter como acabar com aquela revolta, veio de
dentro da casa do coronel a ordem de soltar as negras. Mas que nunca mais,
enquanto vida Simplício Dias tivesse, queria ser incomodado na hora de descanso
com raspada de tamanco em sua calçada!
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