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A confissão do diabo e a água benta
Pádua Marques
Jornalista, romancista e cronista
Naquele
sábado pela manhã do início de setembro o escravo Elias desceu as escadas e
deixou a casa de morada de Simplício Dias da Silva pra ir até a igreja de Nossa
Senhora da Graça, ali perto, buscar o padre Horácio Pereira de Menezes, que
havia acabado de chegar de uma missão na Barra do Longá. A mando de dona Isabel
Tomásia o padre foi chamado pra ouvir em confissão o coronel. Já quase que sem
voz, manifestou desejo de ser perdoado pelos seus pecados pela Santa Igreja. Não
queria morrer e depois arder no fogo do inferno pelo que praticou em cima da
terra enquanto pode e teve poder e dinheiro.
Dentro
de casa e nas ruas próximas a notícia era de que o coronel Simplício Dias da
Silva ia de mal a pior e a família já não tinha mais grandes esperanças de sua
recuperação. No início da madrugada, mal iniciado o cantar dos galos pra os
lados dos Tucuns, Elias havia chegado do Buraco dos Guaribas, onde trouxe a
benzedeira Joana dos Anjos pra ver de perto como estava o padrinho e benfeitor.
Foi chegar e entrando de porta adentro mandou que fizessem um chá de mastruz
pra ser bebido amargo e de um gole só. Era pra aliviar a tosse e botar pra fora
o catarro preso no peito.
Dali
por diante a cozinha ficou sob suas ordens. Negra velha de mais de sessenta
anos, criada nas terras de Simplício Dias pra os lados do Testa Branca, Joana
era curandeira e parteira de ganho afamada. Pegou Carolina, a filha do coronel,
quando nasceu, hoje ali já beirando trinta anos. Era conhecida e respeitada até
no Maranhão e no Ceará. Pelos serviços de parteira e curandeira, ela e a
família ganharam um pedaço de terras pra os lados do Sossego e Volta da
Pimenta.
Mas
enquanto o padre não chegava iam chegando as senhoras pra rezarem as
excelências. Depois de tomado o banho da manhã e o chá de mastruz receitado por
Joana, Simplício Dias da Silva, num gesto da mão levando na direção da cabeça,
deu a entender que queria se confessar. Joana foi tomando a frente de tudo.
Organizou a entrada das mulheres, trouxe um jarro de água fresca e abriu as
janelas do quarto, as que davam pra rua Grande na direção de onde nascia o sol.
O coronel estava deitado numa rede grande e embrulhado até a altura do pescoço.
Pelo
sinal da Santa Cruz, livre nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos. Uma
excelência que Nossa Senhora deu a Nosso Senhor! Esta excelência é de grande
valor! Pai Nosso que estais no céu, santificado seja Vosso nome. Venha a nós o
Vosso reino. Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu! Duas
excelências que Nossa Senhora deu a Nosso Senhor! Esta excelência é de grande
valor. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo! A reza foi ficando forte dentro do quarto até
que Elias veio avisar que o padre Horácio estava chegando.
Vieram
as senhoras soberbas até a porta do quarto pra beijar a mão do padre, um tipo
um tanto roliço, barba mal feita e quase careca. Pouco deu atenção pra aquele
rapapé todo. Veio com os paramentos de dar extrema unção. As mulheres pararam
de rezar e a um sinal de dona Isabel Tomásia, foram deixando o quarto. Padre
Horácio Pereira de Menezes agora iria ouvir os pecados do coronel Simplício
Dias ou pelo menos aqueles que ele teria ainda condições e coragem de contar. A
voz do doente era muito baixa e pra ouvir o padre tinha que se curvar além do
necessário. Parava e continuava. Contava passagens antigas.
As
ambições, o luxo que fez com que gastasse além das necessidades, as intrigas
com vizinhos, os crimes que acobertou, as vinganças por inveja de não ter nobreza
no nome, os castigos a que submeteu seus escravos e agregados, o dinheiro que
perdeu na política, as enrascadas em que se meteu indo pela cabeça de gente de
dentro de sua casa, como o juiz João Cândido de Deus e Silva e a traição ao
imperador dom Pedro I. Tudo isso ele ia contando com muita dificuldade.
Chorava, dizia que tinha medo de morrer e descer aos infernos, feito tantos
negros cativos que humilhou pela força.
Na
cozinha Joana dos Anjos mandava e desmandava. As mulheres das rezas haviam ido
embora e aos poucos toda a vila da Parnaíba haveria de estar sabendo que o
coronel Simplício Dias já estava com a vela na mão. Elias ficou por perto,
entre a porta e o imenso corredor que dava pra um terraço com janelas de
treliça. Estava sempre pronto pra qualquer situação. Simplício poderia ter um
ataque de tosse, se obrar todo, se mijar, qualquer coisa que causasse mais
sofrimento. Dona Isabel Tomásia andava pelo andar de baixo arrumando umas peças
de roupas.
O
sol já ia alto no céu da vila da Parnaíba, o movimento vindo do porto Salgado
tomava o de sempre, quando o padre Horácio Pereira de Menezes depois de rezar
de olhos fechados e segurar a mão ressequida de Simplício Dias da Silva, tirou
de uma bolsa de couro raspado e gasto, o aspersório de prata e pronunciando
alguma coisa em latim lhe deu a absolvição. A água benta quando bateu no rosto
caveiroso do coronel, formou algumas bolhas e que depois foram correr pelas
rugas dos cantos da boca até chegarem ao pescoço.
Elias
estava de olhos fechados acompanhando tudo e não pode conter o choro. Era
talvez a primeira vez em tantos anos que soluçava em voz alta e na frente de
seu senhor, embora ele já não tivesse mais condições de ver aquela compaixão. Depois
de todo aquele momento o padre ainda permaneceu silencioso por um tempo sentado
ao lado de Simplício Dias. Este, agora de olhos fechados, dava sinais de que
não queria mais ser incomodado.
Mesmo
às portas da morte e tendo sido perdoado um rasgo de tempo atrás por Horácio
Pereira de Menezes, Simplício Dias da Silva ainda passava mesmo de olhos
fechados uma soberba. Elias veio de forma bem devagar e ajudou o padre a se
levantar da cadeira. Estava encerrada a
confissão dos pecados do coronel e dono da vila da Parnaíba a um representante
de Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Agora era fechar os olhos, esperar
a morte e o perdão de Deus.
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