A morte da vaca
Pádua Marques
Escritor, cronista e contista
Foi
num dia de vinda que o trem pegou uma vaca do doutor Pedro Ribeiro, advogado
famoso e dono de um armazém de vender milho na Parnaíba. A quase uma légua
descendo do Deserto, o visto foi de dois meninos e irmãos, José e Chiquinho, filhos
de dona Chica e de seu Quincas Medeira, que andavam atrás de matar passarinhos
entre os capinzais e a beira dos trilhos, quando deram pelo acontecido. A vaca
ainda estava se bulindo, se batendo quando eles chegaram.
Pelo
que os dois meninos contaram assim que chegou mais gente, eram umas doze pra
treze entre vacas e novilhas pé duro, todas de bom tamanho, embora de pouco
peso e de dar pouco leite. Mas a uma altura daquelas uma vaca morrer no meio
daquele fim de mundo deu movimento em toda a região no caminho da Parnaíba. Pelo
visto a vaca se atrasou das outras do bando na hora de atravessar a linha de
ferro quando o trem já estava em cima. Foi uma pancada certeira e em cheio na
altura dos quartos do animal. Ficou ali mesmo revirando os olhos!
Um
dos meninos correu na redondeza avisando de casa em casa de que uma vaca de seu
Pedro Ribeiro havia sido morta pelo trem que ia pra Parnaíba. Foi o bastante
pra que dentro de pouco tempo, assim num esfregar de olho, a linha se enchesse
de gente. Os homens vinham de faca e facões na cintura. Os homens foram
chegando e já sangrando a vaca. Outros vieram com sacos de estopa, as mulheres
com bacias e panelas, outros meninos chegavam com cordas, facas de cozinha,
paneiros e jacás. Tudo que pudesse ser vasilha pra levar a carne.
Veio
seu Neco, seu Zeca Isidório, João Canário e seu filho Anacleto. Correram na
mata da beira da linha, todos armados de facões atrás de cortar pés de sabiá
pra fazerem varas compridas que seriam usadas pra esticar o couro da vaca.
Nessa hora pouco se queria saber de quem era o animal e quem era ali no Deserto
o vaqueiro de doutor Pedro Ribeiro. Os homens acostumados a tratar de gado
faziam seu serviço e as mulheres ali perto esperando a hora de que se abrisse o
bucho da vaca.
E
foi chegando dona Celestina com as duas filhas, Lurdes e Socorro, dona Dalva,
mulher de seu Batista. As mulheres traziam bacias e pratos de tudo que era
tamanho, prontas pra que logo que o fato fosse tirado elas repartissem umas
pras outras. A vaca até que era de bom tamanho e de peso, coisa de umas quinze
arrobas. Mas naquela euforia toda ninguém queria saber dessas coisas. E ia
chegando gente e mais gente. Os homens mais afoitos iam cortando a carne e
aquele sangue escorrendo pelos cotovelos.
E
os meninos iam e vinham, corriam tangendo com tiros de baladeiras os urubus que
estavam em cima dos mourões das cercas e nos galhos dos pés de pau. Uns homens
pediam água pra beber porque o sol estava queimando as costas e a sede ia
aumentando naquele que fazer danado. Naquela conversaria toda em que pouco se
entendia quem estava dizendo alguma coisa, ninguém se dava conta de que estava
quase dentro dos trilhos e correndo perigo se outro trem aparecesse. Aos poucos
a carne ia sendo distribuída, o fato sendo tirado e o couro limpo.
Seu
Zeca Isidório e Anacleto fincaram duas estacas no chão e fizeram uma trave pra
que as duas bandas da vaca ficassem dependuradas e eles pudessem agora fazer os
cortes. E as mulheres ali encostando, desconfiadas, pidonas e com a mão na boca.
Outras vinham achando graça, falando intimidades e na certeza de ganho de um
bom pedaço da carne da vaca. Outras mulheres chegavam atrasadas e puxando
meninos pelo braço. Outras mais adiante contando fatos passados, mangando umas
das outras.
E
ali naquele descampado e na beira da linha de ferro, indo pra Parnaíba, no meio
daquela fartura instantânea, aquela gente ia deixando de lado três pedaços da
vaca: o rabo, a cabeça e os pés. Pouco haveria de encontrar algum interessado
por eles. Quem era que iria querer levar pra casa aquilo, um rabo, a cabeça e
os pés? Até que a cabeça e os pés eram coisa de se aproveitar. A vassoura do
rabo era coisa de que ninguém haveria de querer! Quem tinha coragem de levar
pra dentro de casa uma vassoura de rabo de vaca?
E ficou ali no meio do tempo a cabeça da vaca,
com aqueles olhos tristes de quem sabia que um dia iria morrer disso ou
daquilo, uma mordida de cobra, empanzinada ou de prenha, talvez um engasgo com
um nó de cana, uma pancada do vaqueiro. Mas até que bem tratada, descarnada,
haveria de dar mais ou menos um quilo de carne. Os pés, bem lavados em água
quente e bem limpos, dariam depois de retiradas os cascos das unhas, uma boa
panelada, juntando com algum pedaço de tripa ou de bucho.
Mas
decerto que alguém que chegasse atrasado naquela fartura de carne e não tendo
mais nada pra levar e botar no fogo na hora do almoço levaria a cabeça e os
pés! Quanto ao destino do rabo, no mínimo serviria por um tempo pra brincadeira
de menino ou como diziam os mais velhos, pra assustar assombração. E depois que
todo mundo saísse levando seu melhor pedaço, os urubus iriam tomar de conta do
resto.
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