O ABANDONO DO JERICO SARNENTO
Quando saía, à tarde, para minha caminhada,
deparei-me com um jumento à porta de minha casa. Parecia cansado, com aspecto doentio,
como se estivesse à morte; deu-me a impressão de haver sido covardemente
abandonado pelo dono, para morrer em local distante, e não lhe dar o trabalho
de se desfazer do cadáver. Apresentava feridas no corpo.
Seu pelo era falhado, amarfanhado, sem brilho, como se tivesse sarna ou outra doença semelhante. Era magro, como se passasse fome, e tinha as patas tortas, em virtude, talvez, de já haver sofrido algum acidente, provavelmente de trânsito. Roçava o pelo no poste, certamente na intenção de mitigar as coceiras da pele sarnenta. Quando me aproximei, para fotografá-lo, me olhou, com resignação, mas sem medo.
Talvez esperasse alguma bordoada, recordando-se de algum fato passado. Outrora, os jumentos eram queridos e respeitados. Eram úteis, seja para o transporte de carga seja para o de pessoa. Tem muita força; desproporcional para o seu porte. Por isso, eu os comparo a um pequeno trator, com tração nas quatro patas. Hoje, numa época em que quase toda família possui um carro ou uma motocicleta, seja de primeira ou de quinta mão, os jericos foram “encostados”, mesmo na mais remota zona rural.
Os carroceiros preferem um burro, que é maior, tem mais força e é mais veloz. Muitos vivem abandonados, à margem das estradas, correndo risco de vida e pondo em risco a vida dos motoristas e motoqueiros. A respeito do jumento, já escrevi uma crônica, da qual extraio o seguinte:
“É um animal dócil e paciente. Segundo a tradição, foi o escolhido para conduzir a Virgem Maria e o Menino Jesus, na fuga para o Egito, evidentemente com a presença de São José, na constituição emblemática da Sagrada Família. Provavelmente tenha sido a sua proverbial docilidade, mansidão e humildade a razão dessa escolha e honraria.
Como a maioria desses animais ostenta uma mancha sobre as pás dianteiras, considera o povo simples, na voz da lenda, que essa marca é o sinal milagroso e honorífico do xixi com que lhe ungiu o Salvador, como uma forma de homenagem e gratidão pelo serviço prestado. Depois, encerrando apoteoticamente sua participação na Bíblia, foi o escolhido por Cristo para conduzi-lo em sua entrada triunfal em Jerusalém”.
Quando retornei da caminhada, vi o jerico mais animado, a provar que a vida é forte, surpreendente e dinâmica, a pastar o renitente e insolente capim de burro, que nascera, quase por milagre, por entre as pedras do calçamento. Depois, não mais o vi. Não sei que rumo terá tomado. E jamais saberei que destino a vida ainda lhe reserva, além da ingratidão daqueles a quem serviu.
19 de junho de 2010
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