Poesia de Graça Vilhena
Carlos Evandro M. Eulálio
Professor, escritor e crítico literário
A obra “Poesia Reunida”, da Professora Graça Vilhena, publicada pela Quimera Editora, Teresina 2018, reúne as 40 poesias do livro Em Todo Canto, publicado em 1997, e mais 50 poemas do livro Pedra de Cantaria, de 2013, cujos textos tivemos a oportunidade e o prazer de comentá-los no nosso ensaio “Lírica e Memória em Pedra de Cantaria”, publicado neste Portal e no número 50 da Revista Presença, órgão do Conselho Estadual de Cultura do Piauí.[1], onde destacamos a memória como principal dominante poética naquela obra.
Sobre o modus faciendi da poesia
de Graça Vilhena, eu resumiria nas palavras do Prof. Cineas Santos: “[...] Graça constrói versos de rara beleza.
O estrutural e o ornamental, em sua poesia, estão de tal forma imbricados que é
praticamente impossível dissociá-los”[2].
Os poemas de Graça Vilhena,
magistralmente elaborados, são em geral de extensão curta e quase todos em
versos livres. A riqueza de suas imagens é obtida com o emprego de metáforas,
anáforas, assonâncias, aliterações e enjambements, facilmente encontráveis
neste poema[3]:
não quero essa rotina triste
o dedo em riste na menor culpa
e a desculpa nos menores atos
não quero esse beco escuro
esse muro alto onde a gente tenta
pacientemente o outro lado
não quero censura por meu desacato
quando desato consciente
o nó indecente das convenções
não quero o coração acomodado
nem dado a aceitar passivamente
as queixas dementes da razão
não quero a vida com ressentimento
e nem momentos que sejam de abandono
em que o sono pareça morte.[4]
O poema é um grito de liberdade
da mulher insubmissa, daí o caráter
universal do texto. É construído com versos livres em uma só estrofe. A
musicalidade do poema é obtida pelas assonâncias e aliterações em palavras
distintas, que colaboram ainda em virtude do ritmo para a criação de
imagens.
A propósito dos versos livres, o poeta Carlos
Drummond de Andrade, em entrevista que concedeu em 16 de junho 1984 à
pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, afirma:
[...] o Modernismo abriu avenidas
novas em matéria de versificação. Ele deu um impulso muito grande ao verso
livre. É um verso talvez mais difícil de manejar, porque não tem limites, não
há legislação técnica sobre o verso livre. Há quem diga que ele alcança o
limite do ato de respirar da pessoa. Quer dizer, se a pessoa não consegue
enunciar o verso de um simples golpe, ele não é mais um verso, serão dois ou
três versos..[5]
Segundo relato da Prof. Graça,
sua opção pelos versos livres se deve à influência de Bandeira e pelo fato de
com eles obter imagens e mais ritmo em seus poemas.
H. Dobal[6], referindo-se à poesia da
profa. Graça Vilhena, na introdução da obra “Em cada canto”, declara,
parafraseando da autora o poema “Fim de mundo” que, “Ao contrário do Bandeira
da primeira fase, Graça faz poesia como quem vive “pessoas comuns.” [...]. Por
isso os seus poemas suportam com vantagem o teste da releitura, o que é sem
dúvida, um sinal de grandeza”.
O viver pessoas comuns como afirma H.
Dobal é uma forma de estar no outro. Vemos nesse processo de construção poética
um traço marcante da lírica moderna, visto que a poesia, até então como
expressão exclusiva do eu, faz-se agora porta-voz de um ser que não é mais uno.
A poesia passa a interpretar,
também, o universo coletivo dos homens. O conteúdo de um poema, nos termos de
Adorno[7] não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Ao
contrário, estas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação
de seu tomar-forma estética, adquirem participação no universal, como nestes
versos do poema Os ratos, extraído da obra Pedra de Cantaria:
Há um lugar
onde moram os ricos
e outro os pobres
porém há um povo
que mora em qualquer lugar
da cidade generosa
com seus chafarizes e sombras
bancos e marquises
dele nada sabe o rico
nem o pobre
só os ratos que engordam
e correm pelos domingos vazios
do centro da cidade
O texto, cuja temática centra-se na denúncia das desigualdades sociais que acometem as nações em todo o mundo, retrata a realidade do cotidiano transformada em poesia como instrumento de participação social e política. É um traço marcante da poesia lírica universal contemporânea.
Conforme Adorno, essa universalidade do
conteúdo lírico é essencialmente social e só entende o que o poema diz aquele
que escuta, em sua solidão, a voz da humanidade refletida no poema. ” (ADORNO; p. 67)[8]
No entanto, adverte Adorno: “A
referência ao social não deve levar o conteúdo para fora da obra de arte, mas
sim levá-lo mais fundo para dentro dela mesma. ” Com isso, o filósofo e
sociólogo alemão deixa claro que sua intenção “não é criar uma ponte entre dois
elementos distantes, mas descobrir o vínculo que a própria lírica, justamente
por causa de sua emancipação, ainda mantém com a sociedade”.[9]
Ocorre a partir daí o que
Anazildo Vasconcelos da Silva denomina semiotização lírica do discurso, através
da qual
“A mediação literária, ao tempo em que
desenvolve o Eu lírico como instância do discurso, que não se confunde, por sua
natureza mimética com o Eu histórico da identidade do autor, rompe com os
possíveis condicionamentos externos. Desse modo a estrutura lírica se libera da
imagem de mundo tomada como proposição da realidade, e se constitui numa
unidade/totalidade autônoma.”[10]
Dessa forma, vemos o processo
literário de criação de Graça Vilhena, constituído pela mímesis do real,
converter-se em discurso lírico nos poemas com tendência para o épico ou
epilírico, em que de uma forma híbrida a autora concilia o gênero épico e
dramático com a expressão lírica.
Nesse sentido Emil Staiger (1997)
corrobora a tese de que não há nenhum gênero puramente lírico, dramático ou
épico, mas uma interação, uma inter-relação entre os gêneros literários ao
acrescentar:
“[...] apenas chamo a atenção
para um ponto: uma obra exclusivamente lírica, exclusivamente épica ou
exclusivamente dramática é absolutamente inconcebível; toda obra poética
participa em maior ou menor escala de todos os gêneros e apenas em função de
sua maior ou menor participação, designamo-la lírica, épica ou dramática (1997,
p. 189/190).
Esse hibridismo de gênero
literário pode ser observado na poesia lírica de Graça Vilhena nos poemas cujo
tom narrativo remete a algum acontecimento passado como no texto “Caso de
amor”:
Foi como está
um bar
uma cerveja gelada
e o amor lúdico acontecendo.
Depois todos os beijos
pareciam definitivos
o amor amanhava manhãs
colhia girassóis à noite
criava constelações.
Foi o amor além do amar
além do mal
até tornar-se um
desenventivo punhal.
O amor nem sempre tem um final
feliz; a tragédia amorosa cerca a história dos amantes que não ascendem à
felicidade sonhada. O poema embora se enquadre no ramo da Lírica, apresenta
características peculiares também à Épica e ao Drama, quando se constata que a
apresentação de uma ação é movida por um dinamismo de tensão que se encaminha
para o desfecho trágico. Vimos, portanto, que o poema, além de cantar, também
conta.
Vale ressaltar no texto uma peculiaridade da
poeta: a criação de neologismos recorrentes em muitos dos seus poemas. Em
nenhum dicionário encontramos a expressão “desenventivo punhal” que na poesia
adquire uma extraordinária dimensão semântica.
Em outro poema, Cena Familiar, o
tema social emerge do próprio poema:
O avô e a avó tossem
o pai viajou
a mãe talvez volte
o menino alheio ao perigo
brinca à sombra do relógio.
No texto, a voz de um narrador conta
o drama familiar, em meio à indiferença da criança que tem a capacidade de
imaginar e se maravilhar com a vida. Mesmo à vista do caos, e sinalizado pela
inexorável passagem do tempo à sombra do relógio, vê ainda a grande
oportunidade de reinventar a brincadeira. Há no poema traços estilísticos
épicos, quais sejam: um tempo indeterminado, um espaço tópico, um narrador, a
presença de personagens e uma ação que se desenvolve pelo protagonista.
O hibridismo dos gêneros
literários, tão bem explorado na poesia lírica de Graça Vilhena, é recorrente
em muitos poetas modernistas como Bandeira, Cora Coralina, Drummond, Cecília
Meireles, João Cabral de Melo Neto e outros.
Na obra de Graça Vilhena esse tom
epilírico é predominante em seu primeiro livro, com destaque para os textos
Poema Comum, Perdas e Danos e Homem Grande.
Na visão de Mikhail Bakhtin, filósofo
e pensador russo, o que existe no texto possível de ser analisado é o enunciado.
Ao concebê-lo como objeto de estudos linguísticos, ele considera o dialogismo
elemento essencial da linguagem, cujo princípio constitutivo confere
significado e sentido ao discurso. Assim, o texto se define pelo diálogo entre
os interlocutores. Ressalta ainda como característica principal do enunciado,
aqui entendido como a frase em uso, além do dialogismo já citado, a polifonia
de vozes.
O conceito de polifonia, neste
caso, supõe o texto em suas relações com o contexto social, com os textos já
lidos pelo leitor e com experiências vividas. Daí as criações metalinguísticas
de Graça Vilhena, ao compor poemas dedicados aos poetas H. Dobal, Manoel de
Barros e Mário Faustino:
Campos passados
(para o poeta H. Dobal, in memoriam)
campos de verde engano
terra alagada de desejos
onde pastava a inquietação
campos de verdes tempos
falso silêncio de carnaubeiras
leques de harém na mão do vento
ai meninas ai bastardos
grilos de dor que se perderam
na vastidão dos latifúndios
(para o poeta Manoel de Barros)
uma rolha de cortiça serve
para boiar lembranças
de um amor de festa
caixas de fósforo molhadas
são também silêncios
para não acordar os candeeiros
e baganas espalhadas nas calçadas
é só pisá-las
para que os outros pensem
que se apagam estrelas
...
Faustino
(para o poeta Mário
Faustino, in memoriam)
dentro de tua hora
em um cavalo alado
viajo sobre os lagos
de cisnes traduzidos
disse-me o oráculo
que vives além do tempo
entre a aurora e o meio dia
no movimento das palavras ao sol
e se me põe na colheita
teu olhar semeador
sinto a presença humana e infinita
da poeira estelar que te ilumina
Nesses poemas dedicados a cada autor citado, as vozes dos poetas se cruzam em meio aos versos da autora que com eles compõe um novo texto. Cada poema apresenta informações novas e as que já fazem parte do conhecimento prévio do leitor, passando a ocupar novos espaços em que o eu lírico, deixando de ser o centro da interlocução, cede lugar à interdiscursividade.
Esses textos são enfim tecidos
simultaneamente por vozes que se cruzam no interior de si mesmos. A forma como
a autora os constrói guardam semelhança com o poema “Antologia”, de Bandeira,
que é composto intratextualmente, mediante a colagem de versos diferentes dos
vários poemas do poeta. No caso dos poemas pelos quais Graça Vilhena homenageia
os poetas piauienses, eles são compostos de versos desses autores criativamente
e intertextualmente reelaborados.
A metapoesia também comparece na obra de Graça
Vilhena, no
“Poema sem lua”
melhor falar dos homens
e seus eventos
há muito mais poesia
no bêbedo que alinhava a rua
do que no repetido luar
que o ilumina
Aqui a poeta dialoga com Manuel
Bandeira, quando este no seu Itinerário de Pasárgada relata como lhe chegaram
as primeiras noções de poesia através do pai:
“Assim, na companhia paterna
ia-me eu embebendo dessa ideia que a poesia está em tudo – tanto nos amores
como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas. ”
Para Graça Vilhena a poesia não é
só produto da inspiração romântica, pois ao invés “do repetido luar que a
ilumina” ela está dispersa no mundo e pode ser encontrada nas coisas e cenas
mais cotidianas.
A poesia intimista e reflexiva é
outro aspecto relevante na poesia de Graça Vilhena, principalmente quando o
propósito é a tentativa de interpretar o eu lírico através da imagem que se
apresenta no texto intrinsecamente relacionada à poesia.
Otávio Paz define a poesia como
“a outra voz” que é “memória feita imagem e está convertida em voz. A outra voz
não é a voz do além-túmulo: é a do homem que está dormindo no fundo de cada
homem. Memória que presentifica o passado pela recordação, atitude fundamental
lírica: o não distanciamento, isto é, a fusão do sujeito e do objeto, do mundo
interior e exterior, passado, presente e futuro. Por essa razão, Emil Staiger
denomina recordação a essência lírica, com base na etimologia da palavra, O
vocábulo “recordar” deriva do latim: é a junção do prefixo “re”, que significa
“repetir” e “cordis”, que significa “coração”. Assim, “recordar” (re-cordis),
tem o sentido de fazer passar novamente pelo coração. Através do poema “Rua da
Glória” (atual Lizandro Nogueira) tem-se o resgate da memória pela recordação
em sua essência lírica não de uma rua, mas de uma cidade:
paisagem de sol nascido
na estação do trem
cerzindo os dias
sobre as pedras da rua
que abrolhavam luz
manhãs tangiam beatas
palmolivelmente
para a missa da Amparo
senhoras varriam calçadas
recolhiam leiteiras
e caçoavam histórias
com suas línguas de camaleão
no mercado central
as verdureiras arranjavam
buquês de cheiros-verdes
e mais além
mulheres permaneciam
sem hora de seus dias
dissolvendo-se em transparência
nas escamas do cais
Através da poesia podemos
recuperar uma época e descobrir como se davam as relações sociais no nosso
passado. Tem-se no presente a imagem do cenário de Teresina na década de
1950. Poesia que se constrói em estreita
relação com a visualidade presentificada pela memória por meio de uma linguagem
metafórica, sinestésica e criativa. O neologismo, tão recorrente em muitos de
seus poemas, aqui “palmolivelmente” é empregado com humor e como referência á
fragrância do sabonete palmolive que exalava das beatas, já comercializado
àquela época. Seguem a mesma linha temática do texto Rua da Glória os poemas:
Cine Rex (poema visual e de influência concretista), Na beira do Cais (todo ele
composto com versos tetrassílabos, isto é, com quatro sílabas) e o Garrafeiro
(poema que recupera a imagem de um profissional que não mais existe entre nós,
a exemplo do leiteiro, padeiro, vareiro e pescador de defuntos. Este último,
retratado na obra Palha de Arroz por Fontes Ibiapina.
O prof. e filósofo Flávio Kothe, na
obra “Literatura e Sistemas Intersemióticos”, afirma que o texto literário,
isto é, o artefato, é como Lázaro no túmulo: “a leitura é sua ressurreição. Os
textos são cadáveres que ressuscitam de seus túmulos ao toque das mãos e dos
olhos do leitor. ” (KOTHE, 1981, p. 17).
Assim, os motivos que tecem a estrutura de uma obra poética, oferecem
inúmeras possibilidades de leitura.
O poeta Mário Faustino criou e
manteve no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB) uma página
inteiramente dedicada à poesia, no período de setembro de 1956 a janeiro de
1959. As matérias que ali publicava eram distribuídas em páginas por diferentes
seções. Dentre essas seções, a mais lida chamava-se “Pedras de Toque”, título
inspirado nas célebres touchstones de Wallace Steven: eram versos de poemas que
exemplificavam os momentos de alta realização da linguagem poética.
Neste ensaio, selecionei 10 pedras de toque que considero os momentos mais expressivos da poesia de Graça Vilhena:
1. Meus olhos velam tua ausência
2. Os dias são feitos de um longe esquecer
3. Do nosso segredo sabe a flor que vigia a noite
4. Meu coração é um pássaro alongando o céu das incertezas
5. Menino, passa pra dentro, senão o amor te pega!
6. O amor ultimamente anda assim desprevenido sem vontade de ficar.
7. Arranquei de mim tua lembrança como quem solta um pássaro que não canta
8. Ria do que sobrou – dos meus pedaços eu renasço.
9. A mágica feliz do amor: ser amado à loucura e não ser louco de amar.
10. Foi o cafuné das andorinhas que adormeceu os sinos da cidade.
A obra da professora Graça é vasta, bela e agradável de ler. Diz o escritor IÍtalo Calvino que uma obra clássica é a que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Por isso, a análise que realizamos da obra literária de Graça Vilhena, por si, não esgota todos os aspectos estéticos e estilísticos de seus poemas que possuem um campo linguístico fértil, multissignificativo e plurissignificativo à espera de outros leitores e de outras leituras.
[1] EULÁLIO, Carlos Evandro.
Lírica e Memória em Pedra de Cantaria. Teresina-PI : Revista Presença Ano
XXZVIII, nº 50 – Conselho Estadual de Cultura, 2013, p.38/41
[2] SANTOS, Cineas. Água de
Cacimba. In VILHENA, Graça. Pedra de Cantaria, Teresina : Nova Aliança, 2013,
p. 8
[3] VILHENA, GRAÇA.Não querer, In
Em todo canto. Teresina : Corisco / IDB, 1997, p. 19
[4] Não querer, VILHENA, 1997,
p.19.
[5]folha.uol.com.br/ilustrissima/2012/07/1116430-erotismo-poesia-e-psicanalise-em-entrevista-inedita-de-drummond.shtml,
acessado em 4/11/18.
[6]H. Dobal. Um sinal de
grandeza. In VILHENA, Graça. Em todo canto. Teresina : Corisco e IDB, 1997, p.7
[7] ADORNO, Theodor. “Palestra
sobre lírica e sociedade.” In. Notas de Literatura. Tradução de Jorge de
Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 66
[8] ADORNO, Theodor W. Teoria
estética. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1988.
[9] BOTTON, Alexandre M. A
individualidade imanente na poesia lírica. www.unemat.br/revistas
moinhos/media/files, acessado em 3/11/18.
[10] SILVA, Anazildo Vasconcelos
da. Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro : Elo Edit. 1984, p97
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