quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

O Reisado e a liberdade

Foto meramente ilustrativa   Fonte: Google


O Reisado e a liberdade 


Altevir Esteves 


Meu pai era muito generoso com o reisado.  Recebia-os com alegria,  abria espaço no salão,  servia a melhor cachaça e pagava em dinheiro na despedida.  Não era só um.  Tantos quantos fossem os pagadores de promessa ao "Santos Rei", tal era os grupos que batiam à nossa porta mas madrugadas de janeiro,  até o dia seis.  

Mas,  quando "me entendi como gente", meu pai já não morava conosco.  Os "caretas " como se chamavam os dançarinos mascarados,  principal atração do show,  continuavam a comparecer em nossa casa,  talvez ainda gratos por tantas doações anteriores, dos anos de ouro do Sítio Novo, nossa morada e propriedade rural produtiva.   Agora, no entanto,  eram recebidos por minha mãe,  sonolenta,  cansada de tanto serviço, sem pinga,  sem alegria. Ao fim da demonstração,  poucas moedas,  notas dilaceradas e algumas frutas da época.  Ao redor,  meninos,  muitos meninos. 

Eu ficava mais pra trás porque morria de medo dos homens.  Vestindo fantasias de palha de coqueiro,  couro de boi, eles dançavam e cantavam uma toada triste e, para mim incompreensível. 

Uma figura em especial assustadora trazia uma cabaça acima de sua cabeça,  com buracos formando olhos,  nariz e boca,  por onde passava a luz de uma vela acesa no seu interior.  

Certa vez uma senhora compareceu à luz do  dia com a imagem dos Reis pedindo auxílio. Disse que era sozinha, pobre e doente,  razão pela qual não podia esmolar  à noite. 

O Reisado continua vivo em muitas comunidades rurais e até mesmo na MPB, na voz  marcante do Tim Maia.  Mas está difícil abrir as portas para mascarados na calada da noite; distribuir brindes e simpatia quando se foge de vírus e bactérias; quando   se procura uma hora,  que seja,  de silêncio para recuperar as forças de tanta labuta; quando um tostão vale um milhão diante da fome inquietante; quando se desconfia que tudo o que está em liberdade é perigoso, é nocivo,  faz mal. 

Não podendo abrir as portas à noite,  nem de dia,  resta-nos lembrar que os Reis foram guiados por uma estrela.  Que essa mesma luz nos sinalize um bom caminho, que nos ilumine a cada instante,  que saibamos cantar mesmo na madrugada,  nos poucos instantes que nos sobra e que aproveitemos a liberdade de pensar,  de sonhar,  de viver com os recursos de que dispomos.  

Hoje é o dia da festa de Santo Reis.  

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