O MÉDICO E O SANTO
Elmar Carvalho
Depois de formado em medicina e farmácia, Atualpa Mendonça retornou a sua pequenina Várzea Alegre. Montou a farmácia, o ambulatório e o consultório numa das casas de seu pai, o coronel Augusto Mendonça, de vastas barbas e denso bigode. Era ele o manda-chuva da cidade. Fora prefeito várias vezes. Já velho, passou a indicar seus sucessores, quase sempre parentes ou aderentes. Com a mulher, dona Felícia, tivera três filhas e dois filhos. Mas a menina de seus olhos era o filho caçula, que fora estudar na cidade grande, e agora voltava, doutor em farmácia e medicina. O coronel não regateou moedas, e montou uma farmácia sortida e um bonito consultório. Contratou firma da capital, para adaptar a casa aos misteres de Atualpa. Pretendia encaminhá-lo à política, primeiro como prefeito e depois como deputado estadual ou mesmo federal. Tinha moedas e influência política para tanto. Contudo, logo notou que o filho parecia dedicar-se de corpo e alma à sua ciência de esculápio. Não tinha hora certa para aliviar as dores de seu semelhante. Para salvar uma parturiente em dificuldade, ele percorria longas léguas de jeep nas estradas carroçáveis ou no lombo de cavalo, nas veredas mais ermas e mais distantes. As feições do filho eram quase sempre circunspectas, de quase ou nenhum sorriso, como se as dores todas do mundo tivessem desabado sobre ele.
Um dia em que Atualpa estava com a noiva, que viera da capital para conhecer sua família, os futuros cunhados e sogros, foi abordado, ao entardecer, por um matuto angustiado, cuja mulher sofria um longo e doloroso trabalho de parto, na zona rural de Várzea Alegre. A velha parteira não conseguira fazer a criança ser dada à luz. Atualpa, incontinenti, foi buscar sua valise médica e mandou selar o cavalo. A noiva, em suas roupas finas, o repreendeu severamente, e lhe perguntou como ele poderia deixá-la para ir atender o chamado de um caboclo, que lhe vinha incomodar, já a noite quase caindo. O médico respondeu que era seu dever, que apenas cumpria o juramento de Hipócrates, que espontaneamente fizera. A mulher, com ar de profundo aborrecimento, retrucou que ele escolhesse entre ela ou o parto da mulher do rurícola. Atualpa não teve dúvida; disse que a escolha já fora feita, e que a partir daquele momento o noivado estava desfeito. Montou no cavalo, e foi embora sem olhar para trás. Quando retornou, não mais encontrou sua bela e loura noiva, de feições tão delicada e de alma tão dura. Achou melhor assim. Não gostava de dramas e nem de caprichosos chiliques de mulher mimada. Nunca comentou o caso e nunca ninguém lhe puxou esse assunto, nem mesmo o seu velho pai, que, de resto, já perdera a esperança de torná-lo um político. Apenas, vez ou outra, Atualpa comentava que mulher não nascera para morrer de parto; que parto significava vida, e não morte.
Os anos se passaram. O coronel e a mulher morreram. Atualpa envelheceu, sem nunca se casar. Os raros sorrisos se extinguiram. Mas nunca se extinguiu a sua dedicação à medicina. Embora insulado nesse verdadeiro sertão dos confins, mantinha-se atualizado, através dos livros que ia buscar fora, nos grandes centros, ou dos que pedia através do reembolso postal. Malgrado não haver em Várzea Bela laboratório, seus diagnósticos eram sempre certeiros. Pessoas vinham de outros estados para consultá-lo, quando os exames e os médicos desses lugares mais desenvolvidos falhavam. Sua fama cada dia aumentava, e já muitos o consideravam um demiurgo ou um feiticeiro travestido de esculápio da caatinga; outros lhe atribuíam dons mediúnicos, tal o grau de acerto de seus diagnósticos e receitas. Contudo, a cada dia se tornava mais pobre. Apesar do preço irrisório das consultas, poucos lhe pagavam em moeda, mas apenas com agradecimentos e rezas. Um ou outro caboclo lhe trazia em pagamento um capão cevado ou um bacorinho de carne tenra e saborosa. Essa iguarias já não lhe serviam, porquanto se tornara vegetariano. O estoque de sua farmácia foi minguando, minguando, até se tornar irrisório, pois vendia fiado ou mesmo entregava gratuitamente o medicamento àqueles que diziam não ter dinheiro. Dos que compravam a crédito, poucos vinham pagar a dívida. Não sei se era lenda, mas as pessoas gostavam de comentar que ele já chegara a deixar a própria camisa para cobrir um recém-nascido. Se isso aconteceu alguma vez, nunca foi revelado pela boca de Atualpa. Alguns diziam ter visto passarinhos pousados nos seus ombros, quando ele se sentava à sombra da mangueira do quintal de sua casa. Houve mesmo quem dissesse que aves comiam as sementes diretamente de suas mãos. Era certo, no entanto, que ele alimentava aves em seu quintal, e que elas esvoaçam no interior de sua casa.
De tudo isso, pouco se sabe ao certo. Certo mesmo foi a sua morte, placidamente, rodeado dos passarinhos que alimentara, de manhã cedo, à sombra da mangueira, em sua cadeira preguiçosa. Como estivesse demorando muito, a velha empregada foi até onde ele estava; o encontrou de olhos fechados, como se dormisse. Chamou-o várias vezes, sem ter resposta. Resolveu tocá-lo, sem que houvesse a menor reação. Sacudiu-o com certa energia, mas a inércia do médico continuou. Por fim, teve certeza que sua alma bondosa abandonara o corpo inerte. Comunicou o fato aos seus parentes, que adotaram as providências para o sepultamento. Atendendo a suas recomendações, o caixão era simples, sem luxo e sem enfeites. Todavia, a população da pequena cidade, consternada, acorreu ao velório e ao sepultamento, ocorrido no final da tarde. Muitos homens e mulheres choraram; uns silenciosamente, outros em altos soluços, de estremecer o corpo. Na lenta caminhada em direção ao cemitério, observou-se que um bando de aves acompanhava o cortejo fúnebre. Quando chegaram à cova, todos observaram que os pássaros pairaram sobre o local do sepultamento, em lenta revoada, até que a última pá de terra foi atirada sobre o corpo que pertencera a um santo; a um santo que sequer sabia rezar, mas cuja vida fora uma constante oração.
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