Dílson Lages Monteiro
Poeta e escritor
Poeta e escritor
Já se disse abundantemente, por meio das mais diversas teorias, que nós leitores é quem, de fato, controlamos a obra literária. Diante da carga polissêmica e polifônica do tipo de manifestação linguística em que se constitui a literatura, nossos conhecimentos de mundo, nossos conhecimentos técnicos, a experiência de leitura se sobreporiam ao propósito comunicativo do autor, cujo controle sobre a obra seria radicalmente minimizado pela força de múltiplas leituras, pelo tempo e pela história.
Façamos
inicialmente um parêntesis para discordar dessa assertiva, embora o
leitor seja verdadeiramente o grande personagem de toda e qualquer
obra – e disso, às vezes, nem se dê conta. Façamos um
parêntesis porque há autores (digo, obras), cujo projeto literário
vale tanto quanto o teor das interpretações individuais
autorizadas. Ribamar Garcia é um escritor dessa estirpe – o que
escreve encontra facilmente ressonância nos leitores. A cada livro,
uma promessa convertida em prazer.
O
que materialmente esperamos de uma obra escrita por Garcia, além de
seu estilo de lirismo leve e do humor característico? Para responder
a essa indagação, não faremos exercício de crítica literária
propriamente dita. Não há neste olhar rigor metodológico, nem
busca recorrente de aplicar ou comprovar teorias para um objeto,
tampouco o foco na dimensão linguística dos textos, embora sejamos
obrigados, por força das especificidades da literatura, a tangenciar
a dimensão discursiva da obra.
A
leitura aqui é, predominantemente, a do prazer, das
formas-sons-cheiros, das impressões de um texto que atinge a emoção
dos que viveram ou vivem nas pequenas comunidades, sejam rurais,
sejam urbanas. A leitura aqui é genérica, pautada em situar temas e
destacar qualidades da linguagem do autor.
O
que encontraremos, pois, em Contos da Minha Terra, de José Ribamar
Garcia?
Empenhado
em entender as transformações de nosso tempo, o sociólogo espanhol
Manuel Castells demorou-se por vinte e cinco anos em anotações e
estudos para explicar o mundo pós-moderno. Segundo ele, a revolução
tecnológica e a reestruturação do capitalismo originaram a
sociedade em rede que hoje conhecemos:
A
revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do
capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em
rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das
atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por
sua forma de organização em redes (...). Por uma cultura de
virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia
onipresente, interligado e altamente diversificado. E pela
transformação das bases materiais da vida – o tempo e o espaço –
mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo
intemporal como expressões das atividades e elites dominantes
(p.17).
Nesse
contexto, uma das consequências mais notórias desse processo é o
conflito de identidades. Surgem novos atores sociais, de “atuação
fragmentada, muitas vezes isolada, mas sempre em interação com os
aparatos do Estado, redes globais e indivíduos centrados em si
mesmos”.
O
mundo ficcional criado por Ribamar Garcia está na contramão da
sociedade em rede. Por esse motivo, não bastassem qualidades
estilísticas que atestam a grandeza dos textos (a linguagem
simples e envolvente, o lirismo comedido de trechos de prosa poética
refinada, a ironia recorrente e a estilização do léxico e da
sintaxe do piauiense, sobremodo), o autor transpõe para os contos
aspectos da paisagem geográfica, social e humana já
desaparecidos ou transformados pela dinâmica das mudanças dos novos
tempos. O compromisso de Garcia, nesse sentido, é também o
compromisso com a memória coletiva, permitindo aos leitores um
reordenamento de vivências de tempos e espaços menos controlados
pelas relações de poder do que hoje o são.
A
função social do texto de Garcia revela-se, entre outras nuances,
portanto, como compromisso com as memórias dos meninos pobres em
recursos materiais, mas ricos em sonhos e perspicácia, no Piauí das
décadas de 1940, 1950 e 1960, sobretudo. Debruçando-se
principalmente sobre esse tempo, os narradores de cada conto promovem
um reencontro com as origens em uma terra de adversidades sociais,
ainda que opulenta em belezas.
Como
forma particular de conhecimento dos acontecimentos do passado,
consistindo da parte de quem rememora, a reativação e
reordenação de episódios, em parte ou totalmente, de maneira
verídica ou errônea, configura-se a memória, desse modo, em
elemento vital de seu processo de escritura literária. Afinal, como
enfatiza Joel Candau, “(...)A narrativa é lógica em ação –
(...) a sucessão de episódios biográficos perde seu caráter
aleatório e desordenado para se integrar em um continuum o mais
lógico possível” (2011, p.74).
Acrescenta
o antropólogo que “toda a conduta da narrativa produz, portanto,
uma ilusão biográfica, uma ficção unificadora”. Nesse
particular, o texto transcende, pela manipulação da linguagem, a
esfera do real, para atingir o estágio de fenômeno estético.
Em
muitas passagens de Contos da Minha Terra, embora esse não seja o
viés predominante de sua escritura, a ficção de Garcia adquire
cunho biográfico, principalmente quando os narradores materializam
determinados lugares. Em vários contos, casas, ruas e edificações
servem não apenas para a emergência das recordações, mas também
para marcar “o sujeito nos lugares” e “os lugares no
sujeito”.
Nessa
direção, conforme ressaltam Luis Alberto Brandão e Silvana Pessoa,
em análise sobre o sujeito, o tempo e o espaço ficcionais,
descrever recintos e objetos “funciona como tentativa de
cristalizar o tempo passado, petrificar lugares da memória”(p.85),
tarefa que bem caracteriza a intenção do memorialista. Assim
procede Garcia, em vários momentos, unindo ficção e memória:
“Asilo
dos Alienados. Mais tarde, batizado de Hospital Psiquiatra Areolino
de Abreu em homenagem ao seu fundado. Mas o povo continuou chamando
pelo nome de Asilo. Situado na rua ao lado do Estádio Lindolfo
Monteiro, em Teresina, por onde passava o ônibus para Timon.
Tornou-se ponto de referência – até para os deboches. (...)
Chegou até a ser tema de samba da Quinta Velha. Era um prédio
esticado, de janelões gradeados, cercado por um muro alto, que
escondia de quem passava pela rua o imenso pátio ajardinado e
arborizado. Na extremidade do terreno, havia a capela de Santa
Teresinha, onde seria realizada a cerimônia da primeira comunhão”
(p. 39-40)
Ao
inserir a memória coletiva no cerne da criação literária, o autor
eleva a identidade a status de primeira estrela no rol das
singularidades de Contos da minha Terra. É, pois, a identidade do
Piauí – um Piauí de gente e paisagem pitorescas - o grande tema
desta obra. Um Piauí de tropeiros, de um Parnaíba
navegável, de luz oriunda de usina elétrica, de trabalho infantil
disfarçado de dignidade, de causos e lendas. Essa terra e essa gente
que passeiam neste livro são fortemente influenciadas pela
interferência do rural sobre o urbano.
Por
essa razão, essa obra adquire um sentido mais que especial. Vivemos
na sociedade em rede, um movimento inverso de contaminação do
urbano sobre o rural. O espaço e o tempo de hoje se apresentam como
o espaço e o tempo da otimização das atividades produtivas, da
criação de novos atores sociais, submetidos a identidades que
promovem transformações e mudanças sobre o campo e a cidade,
exercendo esta, com o seu modo de vida, não apenas o fascínio sobre
aquela, mas alterando suas particularidades. Este Piauí de viver
essencialmente rural, tal qual conheceu o autor e muitos dos aqui
presentes, vai sendo sepultado pelo vigor das mudanças sociais, mas
permanece sob a forma das representações criadas por autores como
Ribamar Garcia, que faz de suas origens a grande matéria prima de
seu oficio.
Enfatiza
o autor, nestes contos, que se ambientam em Teresina e no interior do
Estado, as relações cotidianas – o dia a dia da gente simples - e
a linguagem piauiense em palavras bem nossas como “fogoió”.
Entre os temas, o fascínio do contato com tecnologias (o automóvel,
o barco a vapor, a energia elétrica, a maquina de pilar arroz); a
atividade laboral de trabalhadores braçais e o êxtase da novidade
nas viagens entre Teresina e o interior do Estado.
Em
Contos da minha Terra, o leitor se emocionará com a vida em torno
das pequenas cidades à margem do Parnaíba, com os dramas dos
extratos sociais desfavorecidos, com o retrato de um Piauí ainda
provinciano. Ao focalizar esses temas, Ribamar Garcia enfatiza
costumes e o léxico regional, filtrados por um estilo, embora não
seja explícito na superfície textual, acentuadamente
memorialístico, em textos que, além de literatura por excelência,
são documentos de uma terra e de sua gente.
Anota
Joel Candau:
“Através
da memória, o indivíduo capta e compreende continuamente o
mundo, manifesta suas intenções a esse respeito, estrutura-o e
coloca-o em ordem (tanto no tempo como no espaço), conferindo-lhes
sentido.”
Por
meio de Contos da minha terra, O Piauí, tal qual o representa
Garcia, passará a ser definitivamente mais valorizado, mais
reconhecido e, principalmente mais amado por cada leitor que se
aventurar pelas páginas desta obra.
Se
o texto literário é, como explicou o teórico da literatura Rogel
Samuel, “a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos”,
podemos categoricamente afirmar que temos motivos suficientes para
dizer: após a leitura de Contos da minha terra, de José Ribamar
Garcia, o Piauí e os piauienses não são mais os mesmos.
Em
Contos da minha terra, de José Ribamar Garcia, o Piauí e os
piauienses são grandes, como verdadeiramente são. Como os sonhos de
cada um de nós.
Referencias:
BRANDÃO,
Luiz Alberto & OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e o
espaço ficcionais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CANDAU,
Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
CASTELLS,
Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt.
2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
GARCIA,
José Ribamar. Contos da minha terra. Teresina: Nova Aliança, 2012.
SAMUEL,
Rogel. Como curtir o livro - o que é teolit ? Rio de Janeiro: Marco
Zero, 1986.
Texto
lido por ocasião da lançamento de Contos da minha terra, de José
Ribamar Garcia, em 27.10.2012, na Livraria Entrelivros, em
Teresina-PI. Na foto de Péricles Mendel (cidadeverde.com), o
escritor Ribamar Garcia e o apresentador da obra, diretor de
Entretextos, Dílson Lages Monteiro.
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