quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Memória e identidade em Ribamar Garcia



Dílson Lages Monteiro
Poeta e escritor

Já se disse abundantemente, por meio das mais diversas teorias, que nós leitores é quem, de fato, controlamos a obra literária. Diante da carga polissêmica e polifônica do tipo de manifestação linguística em que se constitui a literatura, nossos conhecimentos de mundo, nossos conhecimentos técnicos, a experiência de leitura se sobreporiam ao propósito comunicativo do autor, cujo controle sobre a obra seria radicalmente minimizado pela força de múltiplas leituras, pelo tempo e pela história.
 
Façamos inicialmente um parêntesis para discordar dessa assertiva, embora o leitor seja verdadeiramente o grande personagem de toda e qualquer obra – e disso, às vezes,  nem se dê conta. Façamos um parêntesis porque há autores (digo, obras), cujo projeto literário vale tanto quanto  o teor das interpretações individuais autorizadas. Ribamar Garcia é um escritor dessa estirpe – o que escreve encontra facilmente ressonância nos leitores. A cada livro, uma promessa convertida em prazer.
 
O que materialmente esperamos de uma obra escrita por Garcia, além de seu estilo de lirismo leve e do humor característico? Para responder a essa indagação, não faremos exercício de crítica literária propriamente dita. Não há neste olhar rigor metodológico, nem busca recorrente de aplicar ou comprovar teorias para um objeto, tampouco o foco na dimensão linguística dos textos, embora sejamos obrigados, por força das especificidades da literatura, a tangenciar a dimensão discursiva da obra.
 
A leitura aqui é, predominantemente, a do prazer, das formas-sons-cheiros, das impressões de um texto que atinge a emoção dos que viveram ou vivem nas pequenas comunidades, sejam rurais, sejam urbanas. A leitura aqui é genérica, pautada em situar temas e destacar qualidades da linguagem do autor.  
 
O que encontraremos, pois, em Contos da Minha Terra, de José Ribamar Garcia?
 
 
Empenhado em entender as transformações de nosso tempo, o sociólogo espanhol Manuel Castells demorou-se por vinte e cinco anos em anotações e estudos para explicar o mundo pós-moderno. Segundo ele, a revolução tecnológica e a reestruturação do capitalismo originaram a sociedade em rede que hoje conhecemos:
 
A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em redes (...). Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida – o tempo e o espaço – mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes (p.17).
 
Nesse contexto, uma das consequências mais notórias desse processo é o conflito de identidades. Surgem novos atores sociais, de “atuação fragmentada, muitas vezes isolada, mas sempre em interação com os aparatos do Estado, redes globais e indivíduos centrados em si mesmos”.
 
O mundo ficcional criado por Ribamar Garcia está na contramão da sociedade em rede. Por esse motivo, não bastassem qualidades estilísticas que atestam a grandeza dos textos (a linguagem simples e envolvente, o lirismo comedido de trechos de prosa poética refinada, a ironia recorrente e a estilização do léxico e da sintaxe do piauiense, sobremodo), o autor transpõe para os contos aspectos da paisagem geográfica, social e humana já desaparecidos ou transformados pela dinâmica das mudanças dos novos tempos. O compromisso de Garcia, nesse sentido, é também o compromisso com a memória coletiva, permitindo aos leitores um reordenamento de vivências de tempos e espaços menos controlados pelas relações de poder do que hoje o são.
 
A função social do texto de Garcia revela-se, entre outras nuances, portanto, como compromisso com as memórias dos meninos pobres em recursos materiais, mas ricos em sonhos e perspicácia, no Piauí das décadas de 1940, 1950 e 1960, sobretudo. Debruçando-se principalmente sobre esse tempo, os narradores de cada conto promovem um reencontro com as origens em uma terra de adversidades sociais, ainda que  opulenta em belezas.
 
Como forma particular de conhecimento dos acontecimentos do passado, consistindo da parte de quem rememora, a reativação e reordenação de episódios, em parte ou totalmente, de maneira verídica ou errônea, configura-se a memória, desse modo,  em elemento vital de seu processo de escritura literária. Afinal, como enfatiza Joel Candau, “(...)A narrativa é lógica em ação – (...) a sucessão de episódios biográficos perde seu caráter aleatório e desordenado para se integrar em um continuum o mais lógico possível” (2011, p.74).
 
Acrescenta o antropólogo que “toda a conduta da narrativa produz, portanto, uma ilusão biográfica, uma ficção unificadora”. Nesse particular, o texto transcende, pela manipulação da linguagem, a esfera do real, para atingir o estágio de fenômeno estético.  
 
Em muitas passagens de Contos da Minha Terra, embora esse não seja o viés predominante de sua escritura, a ficção de Garcia adquire cunho biográfico, principalmente quando os narradores materializam determinados lugares. Em vários contos, casas, ruas e edificações servem não apenas para a emergência das recordações, mas também para marcar “o sujeito nos lugares” e  “os lugares no sujeito”.
 
Nessa direção, conforme ressaltam Luis Alberto Brandão e Silvana Pessoa, em análise sobre o sujeito, o tempo e o espaço ficcionais, descrever recintos e objetos “funciona como tentativa de cristalizar o tempo passado, petrificar lugares da memória”(p.85), tarefa que bem caracteriza a intenção do memorialista. Assim procede Garcia, em vários momentos, unindo ficção e memória:
 
Asilo dos Alienados. Mais tarde, batizado de Hospital Psiquiatra Areolino de Abreu em homenagem ao seu fundado. Mas o povo continuou chamando pelo nome de Asilo. Situado na rua ao lado do Estádio Lindolfo Monteiro, em Teresina, por onde passava o ônibus para Timon. Tornou-se ponto de referência – até para os deboches. (...) Chegou até a ser tema de samba da Quinta Velha. Era um prédio esticado, de janelões gradeados, cercado por um muro alto, que escondia de quem passava pela rua o imenso pátio ajardinado e arborizado. Na extremidade do terreno, havia a capela de Santa Teresinha, onde seria realizada a cerimônia da primeira comunhão” (p. 39-40)
                                                                      
Ao inserir a memória coletiva no cerne da criação literária, o autor eleva a identidade a status de primeira estrela no rol das singularidades de Contos da minha Terra. É, pois, a identidade do Piauí – um Piauí de gente e paisagem pitorescas - o grande tema desta obra.   Um Piauí de tropeiros, de um Parnaíba navegável, de luz oriunda de usina elétrica, de trabalho infantil disfarçado de dignidade, de causos e lendas. Essa terra e essa gente que passeiam neste livro são fortemente influenciadas pela interferência do rural sobre o urbano.
 
Por essa razão, essa obra adquire um sentido mais que especial. Vivemos na sociedade em rede, um movimento inverso de contaminação do urbano sobre o rural. O espaço e o tempo de hoje se apresentam como o espaço e o tempo da otimização das atividades produtivas, da criação de novos atores sociais, submetidos a identidades que promovem transformações e mudanças sobre o campo e a cidade, exercendo esta, com o seu modo de vida, não apenas o fascínio sobre aquela, mas alterando suas particularidades. Este Piauí de viver essencialmente rural, tal qual conheceu o autor e muitos dos aqui presentes, vai sendo sepultado pelo vigor das mudanças sociais, mas permanece sob a forma das representações criadas por autores como Ribamar Garcia, que faz de suas origens a grande matéria prima de seu oficio.
 
Enfatiza o autor, nestes contos, que se ambientam em Teresina e no interior do Estado, as relações cotidianas – o dia a dia da gente simples - e a linguagem piauiense em palavras bem nossas como “fogoió”. Entre os temas, o fascínio do contato com tecnologias (o automóvel, o barco a vapor, a energia elétrica, a maquina de pilar arroz); a atividade laboral de trabalhadores braçais e o êxtase da novidade nas viagens entre Teresina e o interior do Estado.
 
Em Contos da minha Terra, o leitor se emocionará com a vida em torno das pequenas cidades à margem do Parnaíba, com os dramas dos extratos sociais desfavorecidos, com o retrato de um Piauí ainda provinciano. Ao focalizar esses temas, Ribamar Garcia enfatiza costumes e o léxico regional, filtrados por um estilo, embora não seja explícito na superfície textual, acentuadamente memorialístico, em textos que, além de literatura por excelência, são documentos de uma terra e de sua gente.
 
Anota Joel Candau:
 
Através da memória, o indivíduo capta e compreende  continuamente o mundo, manifesta suas intenções a esse respeito, estrutura-o e coloca-o em ordem (tanto no tempo como no espaço), conferindo-lhes sentido.”
 
Por meio de Contos da minha terra, O Piauí, tal qual o representa Garcia, passará a ser definitivamente mais valorizado, mais reconhecido e, principalmente mais amado por cada leitor que se aventurar pelas páginas desta obra.
 
Se o texto literário é, como explicou o teórico da literatura Rogel Samuel, “a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos”, podemos categoricamente afirmar que temos motivos suficientes para dizer: após a leitura de Contos da minha terra, de José Ribamar Garcia, o Piauí e os piauienses não são mais os mesmos.
 
Em Contos da minha terra, de José Ribamar Garcia, o Piauí e os piauienses são grandes, como verdadeiramente são. Como os sonhos de cada um de nós.
 
 
 
Referencias:
 
BRANDÃO, Luiz Alberto & OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e o espaço ficcionais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
 
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
 
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
 
GARCIA, José Ribamar. Contos da minha terra. Teresina: Nova Aliança, 2012.
 
SAMUEL, Rogel. Como curtir o livro - o que é teolit ? Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986.
Texto lido por ocasião da lançamento de Contos da minha terra, de José Ribamar Garcia, em 27.10.2012, na Livraria Entrelivros, em Teresina-PI. Na foto de Péricles Mendel (cidadeverde.com), o escritor Ribamar Garcia e o apresentador da obra, diretor de Entretextos, Dílson Lages Monteiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário