Cunha
e Silva Filho
Num pedacinho de papel de carta que me ficou nos
guardados do tempo sobraram algumas palavras finais de um fecho de
carta de mamãe. O trecho manuscrito diz: [...] “Francisco ainda se
lembra do dia 1º de Março? Dia do meu aniversário. Lembranças de
todos. Abraços de sua mãe que muito lhe quer. Ivone Silva.” No
verso do pedacinho da carta, mamãe faz um comentário sobre a filha
de uma das minhas irmãs e diz que era uma “linda garota cada vez
mais linda e sabida. Vire.”
Não
sei por que da carta inteira só me ficou aquele pedacinho de
papel.Talvez, numa mudança, e eu fiz muitas, a carta inteira se
tenha rasgado em pedaços, só me restando o que agora relato. O
curioso é que eu descobri o pedacinho da carta quando, abrindo um
livro meu,The
teacher at home –
Conversação inglesa (Porto: Editorial Domingos Barreira, 606 p.),
presente de um estimado ex-aluno chamado Barroso, jovem
português a quem lecionei a disciplina língua inglesa no
início dos anos setenta do século passado. Ele comprou
o exemplar numa viagem de férias à cidade do
Porto. O autor desse grandioso livro é o padre
português, Júlio Albino Ferreira, famoso professor de inglês
em Portugal até os anos trinta do século passado, autor de
numerosos livros sobre a língua inglesa, bem como de dicionários de
inglês-português elogiados por ilustres professores americanos e
ingleses da época. Padre Júlio Albino morou vários anos na
Inglaterra aperfeiçoando-se no idioma de Shakespeare.Vim a conhecer
esse autor porque meu pai tinha na biblioteca de casa um dos livros
didáticos do eminente professor português. Eu mesmo li os mais
importantes livros do padre Júlio Albino.
O
nome completo de minha mãe é Ivone Setubal e Silva. Não sei também
a razão pela qual assinara, na cartinha, só “Ivone
Silva.” Na mocidade foi uma bela mulher,
conforme me mostra um retrato que dela vi na casa de um tio meu já
falecido. Possivelmente naquele retrato estava na casa dos vinte a
trinta anos. Com aquele sinalzinho num dos lados do lábio superior,
sua fisionomia ficava mais atraente. Tinha cabelos escuros levemente
ondulados.Era morena clara como se dizia no Piauí. Sua estatura era
pequena. Os olhos, negros, eram belos e penetrantes; o rosto era mais
para fino, não era redondo como em geral são as mulheres
nordestinas.
No
dia primeiro de março completou noventa e um anos de nascimento.
Faleceu nos anos noventa do século passado, ainda setentona. Numa
crônica, “Os desenhos de mamãe,” publicada noDiário
do Povo,
de Teresina, Piauí, e, posteriormente em blogs, falei sobre a
vocação de mamãe para o desenho e para os bordados. Era esse o seu
lado artístico.
Seu
pai, Avelino Alves Setubal, foi militar do Exército. Fora primeiro
sargento e chegara a tenente. Morreu ainda muito jovem, na casa dos
trinta. Na sua vida de militar houve um retrocesso que resultou na
perda de galões de tenente, fazendo-o retornar à condição de
primeiro sargento. Fora injustiçado. O fato, me parece, se deve à
sua participação na Revolução de 1924, em São, Paulo. Faltam-me
dados para esclarecimentos desse incidente que deve ter-lhe magoado
muito.
Mãe
Ivone era uma pessoa meio austera, fechada e não se desabafava
muito. Na minha infância as melhores lembranças que tenho dela eram
os carneirinhos que me desenhava, lindos desenhos que me deliciavam a
imaginação e com eles me transportava para lugares inimagináveis,
tal era o poder de magia dos carneirinhos. Só ela, com as suas mãos
de fada sabia traçar as linhas que formavam aqueles desenhos que
ficaram gravados na minha memória e fantasia infantil. Sobre esses
carneirinhos já falei na citada crônica.
Outra
grande lembrança que tenho dela eram nossas idas ao Mercado Velho de
Teresina debaixo do calorão da capital piauiense. “Oi, caior
danado”, dizia eu bem pequenino de mãos dadas com mamãe.
Uma outra vez, foi aquele momento constrangedor para um padre
conhecido de mamãe, que me perguntara se queria ser padre
.Respondi-lhe rispidamente: “- Não!” – Por quê?, insistira o
sacerdote. - Padre usa vestido de mulher, retruquei-lhe ainda com
firmeza. O religioso, então, desconversou sem graça e se despediu
de nós.
Outro
momento de grande emoção e tristeza para mim foi aquele dia em que,
muitos anos depois, recebi um cartinha dela pedindo-me que não
deixasse de rever meu pai, pois, segundo, ela os médicos lhe
disseram que a vida dele estava por um fio. Atendi prontamente ao seu
pedido e fui com um dos meus filhos visitá-lo em Teresina.
Finalmente,
uma coisa associada à figura de minha mãe da qual nunca
esqueci. Era o preparo da galinha assada na noite de Natal. Não
havia alguém que preparasse aquela ceia como mamãe. Era algo de
outro mundo. O sabor do tempero, dos ingredientes da terra piauiense,
o ponto certo de assar, a dosagem certa do sal, a farofa, o arroz.
Aquele sabor de comida gostosa ainda consigo sentir lá no íntimo da
minha memória.
É
claro que se forçasse mais a memória iria contar-lhe, leitor,
mais algumas passagens agradáveis ou não do meu convívio com minha
mãe. Uma coisa, contudo, nunca poderei deixar de fazer: lembrar
aquela data querida e guardada para sempre, o dia 1º de março.
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