18
de abril Diário Incontínuo
A
GÊNESE DE “VIDA IN VITRO”
Elmar Carvalho
Uma
de minhas mais antigas lembranças é uma visão noturna de Campo
Maior. Não sei se a conservo fiel, tal qual teria acontecido, ou se
ela foi desfigurada pelo tempo, roída pelo esquecimento ou se
acrescida por outras lembranças posteriores. Não sei o contexto em
que ela aconteceu, e já pouco me recordo de fatos ocorridos um pouco
antes ou um pouco depois.
Vinha
de uma viagem com meu pai, trazendo-me ele em sua bicicleta; não sei
sequer, ao certo, se eu vinha na garupa ou no varão do veículo. Era
já início de noite, quando atingimos as colinas que antecedem o
bairro Flores, percorrendo a estrada, então de piçarra, que liga
Barras a Campo Maior. Sei que vi, ao longe, as luzes do casario.
Perguntei algumas coisas a respeito, tendo meu pai me respondido que
já estávamos chegando, e aquelas eram as luzes das casas. Foi uma
visão surpreendente para mim, e, em minha infância, a achei de uma
beleza ímpar e mágica.
Senti
uma forte emoção ao imaginar que em cada uma daquelas casas,
sinalizadas pelas luzes, morava uma família, moravam meus
semelhantes, pessoas que poderiam ser minhas amigas, com as quais eu
poderia conversar, interagir. Talvez, na soledade noturna das
campinas, apenas eu e meu pai, envolvidos por esmagadora escuridão e
silêncio, eu tenha sentido as luzes da cidade como um alegre sinal
de esperança. Senti de forma intensa, como nunca mais voltei a
sentir, a minha humanidade, a minha comunhão com a raça humana, da
qual faço parte e à qual desejo eternamente pertencer.
Foi
apenas por um curto momento, mas pareceu-me entrar em cada uma
daquelas casas, e reconhecer cada um de seus moradores como um
semelhante, um próximo, um amigo. Foi como se eu os reconhecesse
como um parente ou mesmo um igual a mim. Foi uma espécie de magia,
uma revelação, um insight inexplicável, que talvez tenha durado
apenas um átimo de segundo, mas que, embora de forma esfumaçada,
ainda perdura até hoje, como um resquício de algo que nunca acabou
de todo.
Muitas
décadas depois, voltando de uma viagem a serviço da Sunab, vi, do
alto da rodovia, as luzes das casas do residencial Promorar, em
Teresina. Não sei se me retornou a lembrança do que acabei de
descrever, mas o fato é que me senti irmanar a cada uma das pessoas
que habitavam aquelas pequenas casas, que eu sequer conhecia.
Imaginei que cada uma delas fosse um pequeno mundo, com alegrias,
tristezas e mesmo tragédias.
Imaginei
que naqueles lares poderia haver obscuros heroísmos do cotidiano,
vícios e pecados ocultos, bem como admiráveis e secretas virtudes.
Desejei escrever um longo poema sobre tudo isso, como se a máquina
da existência humana se houvesse escancarado para mim. Numa
madrugada de insônia e ansiedade, fato raro de me acontecer,
rascunhei esse poema. Contudo, o abandonei, porque não lhe encontrei
a qualidade que eu gostaria que tivesse.
Por
longos meses continuei a ruminar esse poema, a desejar escrevê-lo,
com sofreguidão. Mas ele, como uma fêmea manhosa e arredia, se
entremostrava, mas depois se esvanecia, quando já quase se
entregava. Porém, certo dia, quando eu retornava da cidade de São
Pedro do Piauí, no tempo em que eu ainda era juiz substituto,
escrevi, ainda cansado da viagem, de um só fôlego, esse arisco
poema, que hoje pode ser fisgado nos mares internéticos. Dei-lhe o
título de Vida in Vitro. Era como eu via, pelo menos no momento em
que o escrevi, a minha vida e a dos outros. A vida em sua grandeza e
miséria, em suas virtudes e vicissitudes, em seus abismos e
cordilheiras, ostentação e mistério.
Nenhum comentário:
Postar um comentário