terça-feira, 30 de abril de 2013

Terras e vidas roubadas



Fonseca Neto

A invasão tida por triunfal deste lado do Atlântico por negociantes e feitores portugueses por volta de 1500 é o ato inaugural do mais horrendo massacre que um povo impôs a outro. A história da experiência humana narrável, e narrada, não conhece nada de tamanha extensão.
O que agora se chama de Brasil é um dos lugares em que esse desastre se afigurou mais avassalador, com suas feridas abertas sangrando vidas até hoje. E assim é porque não se alterou o sentido da devastação, da “limpeza” do terreno, em proveito do empresariamento mercantil e da realização de negócios capazes da extração lucrativa máxima. Remanesce esta região como espécie de neocolônia, cujas linhagens de dependência, reinventadas, parecem insuperáveis, até porque tecem um enredo semelhante a uma “colonização voluntária” (se existe). Com efeito, o Brasil é um campo aberto às mais diversas perversões relacionadas às práticas de saque, este, a matriz e o móvel de muitas outras formas de violência.
Tome-se como referência alguns fatos comuns no cenário brasileiro, os quais, por alguma razão,  foram motivo de lembrança e deslembrança nos últimos dias. Noticiou-se: “Índios invadem Congresso”; não se noticiou: índios protestam em luta no Congresso contra proposta de roubarem-lhes, de vez, seu direito à terra e à vida. 
Noticiou-se: “Meninos de rua são mortos em Goiânia”; não se noticiou: crianças abandonadas à rua são eliminadas e a população e governantes em geral acham tudo muito natural; eram os mortos afroindiodescendentes. Noticiou-se, com ênfase indignada: “Universitário é morto por menor em latrocínio e o Brasil chora” (um  eurodescendente, com certeza); noticinha de canto de página: três adolescentes são executados em SP na frente da PM e ela nem se move; de tudo, o subtexto – “ah! era gente metida com droga, assim pardos, melhor morrerem ou irem pras cadeias logo aos dez anos de idade”.
Noticiou-se (repórteres tomados de dor, cenhos lacrimosos): “O Brasil em profundo luto precisa chorar mais ainda pelo ataque em Boston, nos EUAN...”.
Indígenas protestando no Brasil é sinal da mais legítima resistência contra a tirania de caráter colonizador. Aliás, sua rebelião é o timbre límpido de sua humanidade. E porque resistiram à escravidão, foram eliminados, fisica e etnicamente. Mas é necessário lembrar, sobretudo: porque resistiram é que vivem.  
Já o que faz a população de São Paulo (90%) querer a retirada de circulação de crianças “delinquentes” a partir dos dez anos de idade é sinal de doença social-mental gravíssima. Deformação cujas explicações há que se buscar nas taras e ódio instilados na sobredita colonização, feita a ferro e fogo: corpos sãos dilacerados por cães e europestes; corpos das áfricas e áfricos acorrentados e chicoteados. Ferrados e feridos, uns e outros, se não “bem comportados” no papel de lavradores das terras e minas dos senhores da arte do Mercado. Afinal, a riqueza extraída e acumulada na era “colonial-mercantilista” – a força desse saque monumental –, foi feita à base da escravidão, esta aviltação extrema da condição humana. E o próprio corpo afro a espoliar, a mercadoria principal garantidora dos mais vultosos lucros. 
Não há violência nenhuma de hoje que não tenha explicação quando se lança luzes sobre as raízes do Brasil. A corrupção, tortura, fome e a elisão de culturas ancestrais, por exemplo. Cabe perguntar: a cultura da paz teria alguma chance num contexto-país cuja formação/deformação tem na prática da violência, em todos os sentidos e formas, o meio principal de sua realização?
A violência dos que se fazem poderosos nos processos sociais em curso compromete a sociedade inteiramente. E os que continuam a ter seu destino violentado são os de sempre. O que sobreviveu da humanidade que habitou este chão antes da agressão mercantil-colonial de 1500, por exemplo, continua a ser alvo de eliminação, exemplificada na atual ofensiva dos “ruralistas” no Congresso.  
Ruralistas”? Projetam tomar as últimas terras indígenas; cruéis feitores, chegados à guerra, inimigos eternos da paz em qualquer lugar onde haja terra e vidas roubadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário