9
de maio
EXORCIZANDO
O MEDO DA MORTE
Elmar Carvalho
Mais
de quinze atrás, um corretor da Urbapi me ofereceu um jazigo no
cemitério da Ressurreição. Querendo arredar de mim o medo de
morrer, comprei logo um jazigo com três gavetas. Felizmente, de lá
para cá, nem eu e nenhum parente próximo morremos, exceto,
recentemente, minha mãe. Contudo, ela havia manifestado o desejo de
ser sepultada em Campo Maior, no cemitério do bairro Cidade Nova, em
local que demarcou, ao lado do túmulo de seu irmão Antônio Horácio
de Melo. Portanto, o meu jazigo continua virgem, e assim espero que
permaneça por vários anos.
Quando
menino, eu tinha enorme medo de perder meus pais. Acho que esse é um
receio de todo jovem. Todavia, em minha idade atual, sentindo que o
estado de saúde de minha mãe se tornara extremamente grave, tentei
aceitar com resignação o termo de seus dias. Consolei-me com o fato
de ter tido uma excelente mãe, durante 57 anos, o que é um raro
privilégio, e também com a convicção de que ela continuará viva,
numa das moradas de Deus, certamente melhor do que qualquer uma do
nosso planeta.
Nas
minhas primeiras viagens aéreas, tinha muito medo de que o avião
viesse a cair, conquanto soubesse que esse era considerado o mais
seguro meio de transporte. Depois, entendendo que de nada adiantava
esse sentimento, resolvi deixá-lo do lado de fora da aeronave, para
não ficar sofrendo à toa.
Na
época em que adquiri o jazigo, passei a esforçar-me para entender a
morte como um acontecimento natural; a compreendê-la como parte
integrante da vida, e como pórtico de entrada para o seu
prolongamento, talvez numa outra dimensão ou noutro plano, conforme
prefira o leitor. Não sei se alcançarei esse meu difícil
desiderato, mas continuarei tentando até o fim, ou seja, até a
morte, para ser mais explícito. Claro, não me refiro a morte
violenta, que esta é sempre impactante e quase inaceitável.
Ouço
falar que algumas pessoas rezam para ter uma boa morte. Tenho ouvido
dizer que algumas pessoas anunciaram o dia em que morreriam. E
acertaram com (invejável?) precisão. Não sei qual seja a vantagem
em sermos profeta de nossa própria morte. Eu preferia adivinhar o
número de um bilhete lotérico. Todos nascemos do mesmo modo: parto
natural ou cesariano. Entretanto, como dizia minha mãe, ante os
prepotentes e arrogantes, ninguém sabe como irá morrer.
Existem
os que buscam a morte, como os suicidas, e os que parecem desejá-la,
como os que se colocam em situação de perigo, seja pelo
temperamento precipitado e irascível, seja por se arriscarem em
aventuras ou esportes ditos radicais. Alguns consideram os suicidas
como sendo corajosos, outros os rotulam de covardes. De minha parte,
creio que sejam pessoas acometidas por desesperança e depressão,
geralmente por causa de dívidas, paixão incorrespondida ou doença
incurável, que lhes tira momentaneamente o discernimento. Mas
prefiro, seguindo o conselho de Cristo, não fazer julgamento, e
acreditar sempre na bondade imensurável de Deus, e que, afinal,
todos seremos resgatados.
Cada
homem tem um fim único, individual. Em algum aspecto a morte de uma
pessoa se distingue da de outra, seja pelo sofrimento, pelo modo de
enfrentá-la ou pela doença e sua evolução. Muitos têm o hábito
de frequentar velório, seja por solidariedade, seja na busca de
recompensa, no objetivo de que o seu próprio funeral venha a ser bem
concorrido. Um dos títulos da Mãe de Jesus é Nossa Senhora da Boa
Morte. Logo, existem devotos de Maria, sob essa invocação.
No
seu livro de memórias A nuvem, o jornalista Sebastião Nery conta
que, ao morrer dona Beatriz, sua bisavó, mulher muito alta, o
caixão, encomendado em outra cidade, não lhe comportou o corpo. Não
havendo tempo para que um outro caixão fosse providenciado, o
coronel José Augusto Vaz Sampaio, tio-avô do memorialista, homem
determinado, disse que a decisão tinha que ser sua. Mandou que as
irmãs saíssem do quarto onde o cadáver estava sendo velado. Como
se fora um novo Procusto, empunhando uma machadinha, não hesitou em
lhe cortar as pernas, de modo que todo o corpo coube na urna, embora
esquartejado. Resolveu assim, a golpe de arma branca, como Alexandre
frente ao nó Górdio, um problema que parecia insolúvel.
Conversando
com um amigo, enquanto caminhávamos no calçadão da Raul Lopes,
contou-me ele que seu pai, homem precavido, ao atingir 70 anos de
idade, tratou de comprar sua urna funerária. Sendo ele um homem de
pequeno porte, o caixão era igualmente pequeno, e ele o guardava no
guarda-roupa, para não incomodar familiares, que acaso receassem
contemplar tal objeto fúnebre.
Tinha
ainda esse homem o cuidado de escovar e limpar sua urna anualmente,
para escoimá-la de inevitável poeira e livrá-la de eventual cupim,
inexorável em sua missão de devorar e destruir madeira, seja ela
usada em admirável obra de arte ou em prosaico caixão de defunto.
Perguntei ao meu amigo, se o seu pai, qual hodierno conde Drácula,
não teria dormido nesse caixão, onde ficaria livre de incômodo
raio de luz, que pudesse lhe perturbar o sono. Ele sorriu, e negou
tal prática mórbida e de tradição vampiresca.
Acrescentou
que o seu velho viveu ainda por mais de duas décadas, após a compra
do paletó de madeira. Creio que a morte, diante desse homem de
pequena estatura, mas de alta coragem, afastou-se por esse tempo
todo, e esperou que ele ficasse bem idoso, e com isso mais frágil.
Ante esse fato, estou até pensando em praticar o mesmo estratagema,
para que a “indesejada das gentes” me deixe em paz por mais algum
punhado de tempo.
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