Foto meramente ilustrativa |
Fonseca Neto
Famoso
na Passagem. Marceneiro com oficina num pequeno salão de porta para
o largo da Matriz. Altivo. Amigo de todos. Brincalhão e festeiro.
De
menino, lembro dele, alto, esguio, rosto marcado, com peças de cedro
e de outras madeiras, suor pingando, a confeccionar os mais diversos
tipos de artefato. E a lembrança é ainda mais forte dos velórios e
caixões de defunto, tipo de acontecimento que, de uma ou de outra
forma, sempre impactou a vida comunitária desde os primeiros
ajuntamentos humanos: Zé Preto era o mais exímio fazedor de urnas
funerárias de nossa cidade. Dependendo das condições financeiras
dos encomendantes, fazia caixões mais ou menos fornidos e
enfeitados. Para defuntos “adultos/casados”, caixões cobertos de
tecido preto, com galões prateados pregados com tachinha pelas
laterais e na tampa; caixões de solteiro com pano azul; de crianças
(“anjos”), branco.
Cidade
com iluminação elétrica até às nove e meia da noite, Zé Preto
tinha a habilidade de ajeitar Petromax e os tinha em quantidade para
aluguel. Assim, nas noites de velório, no pacote da encomenda do
caixão, incluía o fornecimento desses então sofisticados
candeeiros de luz. Guardo viva a lembrança do Zé descendo a rua do
Grajaú com seus Petromax acesos. Ou por outra, carregando um caixão
vazio ao ombro rumo à casa do falecido. Se a morte ocorria à tarde,
todos já ficavam sabendo que naquela noite a cidade não dormiria
porque a batida do martelo lá na sua oficina seria ouvida até à
“ponta da rua...”. Eram os anos de 1960 e em alguns velórios
ainda se cantava as incelências, assustadoras. Mas o Zé também era
quem socorria a iluminação dos bailes de família e até as
noitadas da zona do “pecado” lá do Morro do Mandacaru –e da
baixa do Pau d’Arco.
Uma
figura o Zé, ligado às tradições negras do povo negro do Bom
Lugar, fora a vida inteira um acatado capitão do Mastro, na festa da
Lavandeira, “dia de preceito”. Sua ronqueira célebre, uma das
primeiras a anunciar o início da festejo de São Sebastião, à meia
noite de nove para dez de janeiro. Quando o mastro chegava à sua
porta, na tarde do dia 10, mais tiro de ronqueira, pinga, frito,
ovos; e um tiro de velho rifle 44... E são quase indescritíveis as
feições ardorosas dele, à frente, e de muitos negros naqueles
instantes de celebração dessa folgança devota –aliás, vi algo
parecido recentemente, em São Luís, numa celebração de 29 de
junho, uma dúzia de nonagenários negros, belos, portando e fazendo
rufar enormes caixas e bombos rituais feitos de tronco, na festa dos
bumba-bois da tradição.
Além
do dia da Lavandeira, toda a quermesse do padroeiro São Sebastião
parecia feita para ele, morador nos vagos dos fundos da Igreja,
vizinho do “pade”. Nessa época, o “terreiro” de Zé e
Pixurica ficava repleto de vendedores de balão e suas cápsulas de
carbureto; vendedores de refresco, pirulitos e bombons diferentes dos
que se via nas quitandas o ano todo; por ali, malas-tabuletas de
joias de verdade e de “fantasia”; Zé acolhia uma ou outra banca
de Roda do Jogo do Bicho em sua porta...
Nas
festas de negro, no salão de seu quase vizinho João Preto, assim
nas festas dos “artistas” e “operários”, na União, dia 1º
de Maio, lá estava o Zé, de paletó branco. E no mesmo lugar, nos
bailes de branco, em mangas de camisa, era o porteiro.
Boas
lembranças dele e de dona Maria Pixurica, esposa dedicada. Ele
morreu relativamente novo e, pelo inesperado, chocou a cidade por
muito tempo e a crônica do fato assim se resume: caiu doente e
aplicaram-lhe uma injeção; infeccionou absurdamente, virou um
abcesso e morreu de um dia para o outro. Pixurica prostrou-se em luto
profundo e dizia que não o tiraria nunca mais. Os filhos ficaram já
criados.
O
nome dele de registro era José Pereira de Sena. Serviu à cidade,
respeitado em sua arte, ofício e bem-querença. Das Áfricas:
cidadão da Passagem Franca da minha infância.
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