27
de fevereiro Diário Incontínuo
SOLIDARIEDADE
ANIMAL
Elmar Carvalho
Outro
dia, quando eu trafegava pela avenida Duque de Caxias, nas imediações
da fábrica da Coca-Cola, vi um vira-lata a carregar nos dentes um
saco plástico de lixo, cujo conteúdo certamente era de natureza
alimentícia. Deduzi que ele conduzia o recipiente para se afastar do
local onde o encontrara, com o objetivo de se livrar de possíveis
agressões dos responsáveis pelo lixo ou então para partilhá-lo
com outro cachorro de sua amizade.
Creio
não seja fora de propósito a segunda hipótese. Não faz muito
tempo, assisti a uma reportagem de TV, na qual era mostrado um
cachorro, que, após alimentar-se em um monturo de certa cidade,
levava nos dentes um saco com alimento para um outro local. Uma
senhora, que morava perto, observou isso algumas vezes. Como tenha
ficado muito curiosa sobre que destino o animal dava à “quentinha”
que conduzia com muito empenho e cuidado, resolveu segui-lo.
Descobriu
que o cão levava o alimento para um outro cachorro, que não podia
fazer o longo percurso que ele fazia, seja porque estivesse doente,
seja porque fosse de pequeno porte, já não recordo o motivo. Isso
me comoveu sobremaneira, sobretudo numa época em que vemos o homem,
considerado como sendo um animal racional e espiritual, matar ou
prejudicar seu semelhante por motivos torpes, fúteis ou egoísticos.
É
verdade que o ser humano também comete atos heroicos, altruísticos
e às vezes sublimes. Mas estes, nos dias de hoje, são raros,
podendo mesmo ser considerados quase como exceções, aos quais a
mídia quase não dá a mínima importância, preferindo noticiar os
fatos sangrentos e escabrosos, permeados de maldade e egoísmo, que
lhes aumenta o número de leitores, ouvintes ou espectadores.
Como
exemplo das exceções a que me referi, contarei um fato emblemático
que me foi revelado pelo saudoso deputado Humberto Reis da Silveira,
de quem tive a honra de ser amigo. Disse-me ele que, em sua
juventude, ao fazer uma viagem a cavalo pela caatinga piauiense,
salvo engano com destino a Oeiras, ao fazer uma parada para que os
seus acompanhantes se alimentassem, viu perto do rio Canindé umas
pessoas que identificou como sendo retirantes.
Ao
se aproximar dos viajantes, notou que uma mulher, em gesto
altruístico, sublime e heroico, furou o braço com um espinho de
talo de carnaubeira, para dar o sangue a um filho pequenino.
Naturalmente, já não tinha leite, em sua penúria e fome. Humberto
Reis se comoveu com aquele episódio, quase diria dantesco, e
resolveu, em conversa com seu irmão, que lhe acompanhava, dar o
resto de seus mantimentos para aquela família, que vagava pelos
sertões, em busca de melhores plagas. Nunca o notável político, em
sua longa vida, se esqueceu dessa cena digna de tela cinematográfica
ou de talentoso pintor.
Minha
mulher me contou que, perto de nossa casa, sempre via dois cachorros.
Um parecia não conseguir andar, como se estivesse muito doente.
Notou que o sadio parecia fazer companhia ao outro, como se não
quisesse abandoná-lo, em exemplar solidariedade canina. Dias depois,
notou que apenas o são se encontrava no local. Procurou se informar
sobre o que acontecera.
Uma
pessoa lhe contou que um cão era filho do outro. Acrescentou que o
sadio fez companhia ao doente até quando este morreu e foi
recolhido. Ao que tudo indica, não desejava que o outro se sentisse
solitário e abandonado. Parecia não querer que o seu semelhante
morresse sozinho e desamparado. Cuidou dele e o vigiou até o fim.
Entre
nós humanos (e não estou fazendo nenhum julgamento, seguindo a
recomendação crística), vemos muitas vezes um filho deixar seu pai
ou sua mãe em um abrigo, sob a promessa de lhe fazer frequentes
visitas, e nunca cumpri-las, como se estivesse se livrando de um peso
incômodo e indesejável. E descartável.
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