O
DILEMA DO JUMENTO
Jacob
Fortes
Tema
dos mais recorrentes no Nordeste brasileiro diz respeito à figura do
jumento; mascote nordestina conhecida popularmente por jegue. O
jumento, que remonta os tempos coloniais, testemunhou: as secas, o
reinado dos coronéis de patente, a cultura do couro, o cangaço, as
emigrações caudais, o fanatismo religioso, e, evidentemente, as
chagas e lepras sociais que nunca esconderam a sua paixão por aquele
pedaço de mundo ensolarado. Durante séculos esse animal proletário
ajudou o homem, por conseguinte ao país, ora como cargueiro da
riqueza do campo, ora, no papel de cavalo de pobre, transportando,
desde crianças a anciãos, tudo quanto lhe escancharam ao lombo. O
mérito desse resignado serviçal obteve o reconhecimento de muitos,
sobremaneira dos que dele se serviram, mas para outros essa
inestimável folha de serviços prestados parece de pouco valimento;
insuficiente para assegurar respeito unânime. Diferentemente dos
cavalos, cujos nomes carinhosos fazem lembrar virtudes, (nem sempre
reais), os jumentos são tratados, mais das vezes em tom de mofa, por
inumeráveis apelidos que, na sua grande maioria, lhe conferem
defeitos. Aliás, no dizer de Euclides da Cunha, o jumento é o
animal mais caluniado. Porém, as desqualificações e zombarias que
rosnam contra a sua figura são tentativas que visam deslustrar as
excepcionais qualidades desse animal tardo; de mansidão evangélica.
Afinal, que outro animal de doma tem mais resistência, mais
temperança, mais energia, mais sobriedade, mais tenacidade e mais
poder de adaptação ao meio inóspito em que vive? Que outro animal,
resignadamente, realizou todo tipo de trabalho proletariado durante
séculos? Que outro animal suportaria os habituais rigores da seca?
Depois
de séculos de trabalhos realizados sob o estímulo do chicote, eis
que lhe veio em socorro, inesperadamente, uma princesa
antiescravagista, não a Isabel. Triunfante, a princesa tecnológica
chegou trazendo carta de alforria, em forma de cavalos mecânicos,
por meio da qual libertou o jumento da condição de cativo. O mundo
caracteriza-se por mudança “O tempo não existe exceto para
mudar”.
Alforriado
pela modernidade, e de porteira aberta por se haver em desuso o
jumento, carregando o cartaz da obsolescência, pôs-se a errar pelas
paragens nordestinas percorrendo, numa pachorra de lesma, todo o
tempo vazio a sua frente. Prolífero por essência — sem
contraceptivo que lhe modere a prole — foi agregando descendentes,
ocorrência que o salvou da condição de solitário. Durante sua
errância acabou por descobrir rodovias mornas que as adotou como sua
estalagem preferida onde, invariavelmente, se mantém emperrado por
toda a noite. Ao empacar-se, de través, nas vias exclusivas dos
cavalos mecânicos, incorreu em grande culpa epifenômeno que lhe
rendeu o libelo acusatório de ser o principal causador de acidentes
nas estradas nordestinas: federais; estaduais e vicinais. Nisto ele é
confesso, mas outros animais, igualmente à solta, também
protagonizam acidentes, que são levados injustamente a débito
apenas do principal acusado; de lombo timbrado com a fama da
distração.
Para
piorar o insidioso fado do jumento, recentemente jornais noticiaram
que a sua carne seria exportada para a China. Aliás, a urgência em
aprovisionar aquela gente de alimentos incomuns remete para a ideia
de veloz crescimento populacional, ocorrência, diga-se, fomentadora
da fome no mundo. Se não forem retesadas as rédeas da natalidade
não dista muito para que a espécie humana se veja decuplicada.
Nesse patamar de bocas inumeráveis jumentos apenas irão paliar; ao
invés de repasto serão apenas hóstias.
Mas
o menino Jesus há de interceder para que o seu favorito meio de
transporte, (ainda marcado com o seu xixi), seja poupado do matadouro
ainda mais porque, depois de haver suportado tantas vexações,
tornou-se digno de salvar-se, se é que sofrimento é penhor de
salvação. Essa a minha fé; onde há fé o mal recua. Em vez de
servir de carnagem ao povo chinês prefiro que o jegue permaneça,
juntamente com as cabras, ornando a paisagem catingueira do Brasil
até que a ação deletéria do tempo lhe faça perecer; porém nos
braços maternais do seu berço nordestino. Evidentemente os órgãos
responsáveis, (que adoram explicações e cantilenas em vez de
resultados), hão de pôr-se em ação firme de modo a tornar solúvel
esse controvertido problema asinino, em prol da boa ordem rodoviária.
Ante
ao malfadado propósito de transformar o corpo do jumento em
mantimentos orientais urge que manifestações nordestinas retumbem
em desfavor desse desalmado e asneado intento. Ao invés da morte,
em paga pelo bem que praticou, o jumento faz jus a merecido descanso,
inclusive porque quando Jesus voltar para a segunda e última chamada
de salvação, desta feita no Nordeste brasileiro, o jumento deverá
estar no seu lugar, no habitat que lhe foi reservado pelo criador. E
no frontispício das cidades nordestinas seus admiradores erigirão
uma escultura em sua homenagem para exaltar toda a serventia que teve
ao homem. No rodapé da escultura haverá uma gravura onde se lê:
“Dileto amigo jeguinho, receba o nosso preito de admiração e
gratidão”.
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