Da esquerda para a direita: Paulo Nunes, Hardi Filho, Nelson Nery Costa, Francisco Miguel de Moura, Adélia Hardi, Osvaldo Lemos, Herculano Moraes e Elmar Carvalho |
1º de agosto Diário Incontínuo
HARDI FILHO – UM
POETA OITENTÃO
Elmar Carvalho
No final de
junho, a Academia Piauiense de Letras, por iniciativa do presidente Nelson Nery
Costa, comemorou os 80 anos de idade do poeta Francisco Hardi Filho, nascido em
Fortaleza – CE, mas há mais de cinco décadas radicado no Piauí, onde trabalhou,
constituiu família, criou os filhos e fez suas mais caras amizades.
Por mais de 30
anos trabalhou no velho IBDF, atual IBAMA, em que chegou a exercer a Delegacia
Regional de nosso Estado, na qualidade de delegado substituto. Além de seu
emprego público, com o qual sustentou a família, exerceu o jornalismo,
sobretudo o de caráter cultural, ao publicar seus artigos, suas crônicas e seus
poemas. Também teve programa radiofônico, em que divulgou a nossa literatura e
os nossos poetas e escritores.
Na solenidade
acadêmica, discorreram sobre Hardi Filho os poetas e escritores Herculano
Moraes e Francisco Miguel de Moura, que teceram considerações sobre sua vida e
sobre sua atividade literária, de modo especial sobre sua participação no
Círculo Literário Piauiense – CLIP, a que os três pertenciam. Estavam presentes
outros clipianos, entre os quais Osvaldo Lemos, que escreveu uma das mais
percucientes biografias de Petrônio Portella Nunes.
Quando a palavra
foi facultada, senti-me quase na obrigação de ir à tribuna prestar o meu depoimento
sobre o poeta. Não lhe dissequei a obra e nem falei sobre os seus grandes
méritos literários; tampouco perquiri a sua mundividência. Preferi abordar a
nossa amizade e companheirismo de mais de três décadas. Optei por dar à minha
fala um tom mais intimista, subjetivo e familiar, posto que frequentei a sua casa
em algumas ocasiões, principalmente quando ainda era um jovem bisonho e
sonhador.
Passei a
conhecer o Hardi Filho a partir de 1982, quando fixei residência em Teresina. A
partir de então visitei o poeta, em várias ocasiões, em companhia do Kenard
Kruel e de outros escritores, entre os quais o seu grande amigo Francisco
Miguel de Moura. Ficávamos sob uma das árvores de seu jardim. Éramos bem
acolhidos pelo poeta e por sua esposa, dona Adélia, sempre solícita, atenciosa,
cordial.
Em nossas primeiras
conversas, fiz questão de dizer ao casal amigo que já lhes conhecia o filho
Francélio, na época estudante universitário em Parnaíba. Tinha ele forte
inclinação para as artes plásticas, assim como o pai, que fizera ilustrações diversas
e era um notável desenhista, tendo feito belas capas para seus próprios livros
e para os de escritores de sua amizade. O Francélio elaborou importantes
ilustrações para o jornal alternativo Inovação, de que fiz parte, mesmo quando passei
a residir em Teresina.
Palestrávamos
sobre os mais variados assuntos, mas preferencialmente sobre os relacionados
com arte e literatura. Hardi era sempre ponderado, judicioso, conquanto firme
em suas opiniões. Nunca fazia elogios literários descabidos, embora fosse um
“diplomata” em suas palavras. Quando solicitado, com insistência, a fazer
prefácios ou apresentações, era cuidadoso com as palavras, e quando os textos
não mereciam considerações favoráveis, falava sobre a temática e sobre o autor.
Em 1986 um grupo
de literatos, entre os quais Chico Miguel, Magalhães da Costa, Herculano
Moraes, Rubervam Du Nascimento, Adrião Neto, Kenard Kruel e este diarista,
resolveu ressuscitar a União Brasileira de Escritores do Piauí. Hardi fez parte
desse time de agitadores culturais, e salvo engano foi membro da primeira diretoria
(1986-1988), presidida por Chico Miguel, que deu existência jurídica e efetiva à
entidade. Fui seu presidente na gestão seguinte (1988-1990). Fazíamos uma
reunião por semana, e Hardi estava sempre presente, mesmo quando ingressou na
APL, um pouco depois.
Fiz em meu
depoimento um breve paralelo entre o Hardi e o Chico Miguel, pela amizade
antiga entre eles, por serem dois grandes intelectuais e por serem praticamente
da mesma idade. Disse que o Hardi Filho era mais afinado com a tradição
poética, embora tenha feito e faça belos poemas de feição modernista; o Chico
desde cedo aderiu à vanguarda poética, inclusive praticando poemas concretistas
e visuais, conquanto ainda hoje e sempre cometa sonetos rimados e metrificados,
quando bem entende, sem medo do patrulhamento literário de pretensos
vanguardistas.
Em um
aniversário na casa do Chico Miguel, há mais ou menos duas décadas, falamos das
novas tecnologias, que então já começavam a proliferar. O poeta anfitrião falou
com muito entusiasmo das vantagens do computador, que então já usava. Discutimos
as vantagens desse equipamento para um escritor, entre as quais a utilização da
tecla para deletar ou apagar, dos atalhos para copiar e colar, quando queríamos
mudar a localização de uma frase ou verso, ou transcrever uma citação. O nosso
Hardi foi categórico em dizer que gostava de escrever seus textos à mão, e
depois passá-los a limpo, na sua velha máquina de datilografia. De lá a esta
parte, nunca fez uso de note book, tablet e demais parafernália tecnológica,
fiel a si mesmo como sempre tem sido.
Na primeira
metade da década de 80, fui morar em uma república, da qual faziam parte o
Nadal e o Gelvan Lisboa, localizada na Rua Areolino de Abreu, perto do edifício
da Caixa Econômica Federal. Nesse velho casarão, segundo nos contaram, havia residido
um engenheiro eletrônico, que teria cometido suicídio, por motivo que
desconheço.
Na porta de um
dos quartos, alguém havia estampado, em letras manuscritas, um lindo e
melancólico poema de Hardi Filho. A tinta das letras, embora não fosse
vermelha, parecia escorrer como sangue ainda fresco. No silêncio e na solidão
das noites mortas, sentindo o inebriante perfume de uma cajazeira em flor, eu
parecia sentir a presença do suicida a recitar os versos de Hardi. Talvez tenha
sido aquela – o poema vazado em velha porta – uma das maiores homenagens,
apesar de anônima, que já lhe tenham feito.
Foi nesse velho
solar, talvez um tanto perturbado por sua atmosfera soturna e um tanto
fantasmagórica, num cenário em que pareciam vagar o vulto indefinido do suicida
e ressoar os versos melancólicos de Hardi, que escrevi o meu poema A casa no
tempo, cujos versos deixei impregnados naquelas velhas paredes: “A casa vive em
mim. / Vive em mim / com seus gemidos / de fantasmas que / arrastam correntes /
por entre ais doloridos. / Vive em mim / com suas lamentações de suicidas / que
gemem e gemem (...).”
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