sábado, 7 de maio de 2016

Homens de arroz


Homens de arroz

José Pedro Araújo
Romancista, contista e cronista

Durante os anos cinquenta até os setenta, grande parte da atividade econômica de Presidente Dutra girava em torno da cultura do arroz. Em anos passados, ao arroz somava-se o algodão, e em menor importância, o gado bovino. Se no período em que o algodão era muito forte na economia proliferavam as bolandeiras, ou descaroçadoras de algodão - culminou com uma usina de maior porte, cuja força motriz era a caldeira a vapor -, no período em que o arroz era mais importante, houve um grande aporte de usinas de beneficiamento deste produto na cidade. Era em torno dessas usinas que gravitavam os trabalhadores que convencionei chamar de “homens de arroz”. E passei a chamá-los assim porque estavam sempre, dos pés à cabeça, cobertos por palha de arroz, grãos do cereal presos ao cabelo e também por aquele pó fino igual poeira, extraído no ato do beneficiamento do produto. Cabelos, cílios, pestanas, braços, pernas, tudo recebia resquícios do produto que inflava a economia regional naquele tempo.

Por essa época também, os pátios das usinas ficavam repletos de caminhões de diversos municípios nordestinos. Menino curioso, eu gostava de ler as placas pregadas nos para-choques que atestavam a origem daquele transporte. Nomes como Baturité, Icó, Jaguaribe, Crato, Sobral, Juazeiro, Campina Grande, Cajazeiras, Souza, Mossoró, Caruaru, Goiana, Campo Maior, Piripiri, Piracuruca, Picos, entre tantos outros, aguçavam a minha curiosidade e faziam meu pensamento voar até eles, fazendo-me prometer que algum dia ainda iria conhecê-los. Sonhador, perguntava-me como seriam essas cidades e, vez por outra, abordava algum motorista com essa pergunta.

Era nesse período também que a Praça da Bomba se enchia dos “homens de arroz”, chamados pejorativamente de Chapeados. Eram, em geral, homens rústicos, fortes, que traziam sobre a cabeça uma espécie de chapéu muito esquisito, sem aba, com a copa acolchoada para diminuir o impacto da sacaria sobre a cabeça, uma vez que transportavam tudo sobre ela. Quase todos eles usavam a metade de uma bola de futebol costurada naquele chapéu horroroso. Pobres trabalhadores braçais, sem contrato de serviço assinado com as usinas, a descoberto de qualquer cláusula trabalhista de lhe conferisse proteção em caso de acidentes de trabalho, recebiam muito pouco para carregar os caminhões. E no fim tarde, exaustos e suados, procuravam os sórdidos botecos para aliviar a tensão do pesado dia de trabalho, e lá deixavam parte considerável da féria arrecadada. Para suas casas pobres, conduziam apenas o suficiente para mantê-las abastecidas do mínimo necessário a uma dieta alimentar para manter a família precariamente alimentada.

Esses homens incógnitos tiveram grande importância no desenvolvimento do município que se formava. Mas, duvido que tenha sido, algum deles, homenageado com o nome simples em alguma das centenas de ruas da cidade. A atividade, contudo, era tão importante naquela época que levou o nome da cidade ao conhecimento de vários municípios nordestino. Presidente Dutra passou a ter o nome de fartura, terra do arroz, em distantes rincões, lugares em que sobre as mesas de famílias desconhecidas era servido o que era produzido no Curador, transportados por caminhões possantes e carregados por homens de força, pagos com aviltante ordenado.

Lembro-me do nome de alguns desses carregadores, mas não vou decliná-los para não cometer injustiça com os demais. E eram muitos. Viviam em grupo, transitando de uma usina para a outra à medida que seus serviços eram solicitados.

A cidade mudou. Já não é mais celeiro de produção de alimentos. Pelo menos não mais como era. Hoje é um polo de comércio dos mais importantes do interior maranhense. Os chapeados também sumiram. Sumiram é a forma de dizer. Mas o município não tem hoje tantas usinas de beneficiamento de arroz que possa ofertar trabalho para tanta gente como no passado. Pois o arroz que chega à panela do nordestino, inclusive do presidutrense, é quase todo ele originário do Rio Grande do Sul ou de Tocantins. Mudou o foco do município, mudaram de atividade os nossos trabalhadores braçais que também não precisam mais transitar com seus chapéus esquisitos, quase uma rodilha, como as que usavam as mulheres para transportar legumes da roça na cabeça.


Ilustra o presente texto uma fotografia antiga, da minha época de criança, que atesta tudo o que disse acima. Nela aprecem algumas crianças que gostaria muito de saber por onde andam. Perdi o contato com elas quando tive que sair à procura de um jeito melhor de escrever a minha história. A fotografia atesta também a importância que a produção agrícola tinha para o município: a maioria dos meninos posou ao lado do caminhãozinho feito de lata de óleo lubrificante, carroceria assentada sobre molas de arco de barrica.

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