HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XXXIV
O segredo de Matilde
Elmar Carvalho
“Desde
garoto conhecia de vista a senhora Matilde, filha do rico comerciante e
fazendeiro Vespasiano Rocha. Era uma matrona imponente, alva, de cabelos
encaracolados, ainda bonita no alvorecer de sua velhice. Tinha certo orgulho do
passado de riqueza de seus ancestrais, contudo sabia ser simpática, e
cumprimentava as pessoas sem demonstrar empáfia. Fiquei sabendo que fora casada
durante apenas três meses. Nunca alguém teria coragem de conversar com ela
sobre tão íntimo assunto, mesmo porque ela jamais permitiria esse tipo de
intimidade.
Quando
resolvi escrever minhas Histórias de Évora, colhi informações com algumas
pessoas idosas, sobretudo com meu amigo Francisco Cardoso, que considero o mais
importante arquivo vivo de Évora. Nessa altura ele já havia escrito dois livros
sobre nossa cidade, mas, por ter sido amigo de Matilde, de seu pai e de dois de
seus irmãos, resolveu não escrever sobre o que sabia a respeito de seu marido e
de seu casamento, de tão efêmera duração. Juntando o que ele me contou e o que
me disseram outras pessoas, passarei a fazer breve relato sobre esse rumoroso
episódio, nunca bem esclarecido, sobre o qual pairam dúvidas e especulações
fantasiosas, contraditórias e desencontradas.
No
começo dos anos sessenta, Renato Portela montou escritório de representação
comercial em Évora. Era natural de São Paulo, e conseguiu se tornar
representante de várias firmas paulistas. Foi bem sucedido em seu
empreendimento. Logo fez amizade com os principais comerciantes eborenses,
entre os quais Vespasiano, cuja casa frequentava esporadicamente, quando
convidado. Também recebeu convite para integrar o Rotary Clube, passando a ser
um de seus mais assíduos frequentadores. Tinha ele em torno de 25 anos.
Comentava-se que era sócio de seu pai, próspero empresário na Pauliceia.
Consta
que logo nas primeiras visitas que fez à casa de Vespasiano, tomou-se de amores
e encantamento por Matilde, que na época tinha 15 anos de idade. Brincava ainda
de boneca, às escondidas. Aliás, com os seus olhos castanhos e cabelos louros
ondulados, parecia uma boneca a brincar com outras bonecas. Não tardou Renato a
confidenciar ao pai que gostaria de se casar com Matilde. Nessa época os
casamentos ainda eram influenciados pelos pais. O velho foi franco:
–
Olhe, por mim não teria problema. Até teria gosto nesse casamento. Mas olhe que
a menina é muito novinha e ainda brinca de boneca, como você já deve ter visto.
–
Não tem problema. Sou paciente, e espero o tempo necessário.
Ante
essa resposta, Vespasiano disse que levaria o caso a sua mulher, para tentarem
obter o assentimento da filha. Dias depois, comunicou a Renato que sua mulher
concordara, e que iria envidar esforços para conseguir a concordância da filha,
que sequer pensava em namoro, quanto mais em se casar. Seja como for, no ano
seguinte, quando a garota completou 16 anos, soube-se que ela, embora com certa
relutância, aceitara o namoro, que apenas consistia em o representante
visitá-la, sentar-se na cadeira a seu lado, e quanto muito enlaçar suas mãos.
É
bem de se ver que isso deveria ser um estorvo para uma adolescente, que às ocultas
ainda brincava de boneca e casinha. Quanto a Renato, estava cada dia mais
encantado e fremente de paixão. Por isso mesmo, tratou de apressar o casório,
que se realizou quatro meses após a jovem completar as 16 primaveras. Foi uma
festa estupenda, como tão cedo não se viu outra igual na cidade.
Uma
orquestra da capital foi contratada, e executou durante a noite toda as mais
belas melodias em voga. As bebidas eram dos mais diversos tipos, muitas
importadas. As iguarias foram elogiadas por todos. Fogos de artifício
iluminaram e embelezaram a noite eborense. Na cerimônia religiosa, não havia
outra comparação, Matilde, em seu lindo vestido branco de noiva, ostentando véu
e grinalda, parecia uma boneca. Aliás, o imenso bolo confeitado, em forma de
castelo, tinha dois bonecos na ponte levadiça: o noivo e a noiva.
Por
razões desconhecidas, Renato passou a viajar com certa frequência para a
capital do estado, e foi a São Paulo em duas ocasiões, no curto intervalo de
três meses. Quando retornava trazia umas caixas com as mais lindas bonecas, que
dava para Matilde. Não tinha mais a alegria de antes. A moça também já não saía
à rua. Portanto, ambos pareciam bem infelizes com o matrimônio. Três meses após
a festa nupcial, Renato anunciou que iria a São Paulo, para fazer algumas
compras e alguns contatos do interesse de seu escritório de representação. Foi
e não mais retornou a Évora.
As
especulações dos fofoqueiros eram desencontradas e até mesmo cheias de
contradições. Uns defendiam a hipótese de que Matilde, ainda ameninada na época
e muito apegada às suas bonecas, não aceitava as investidas sexuais do marido.
Outros levantavam a tese de que o problema era dele; ao ver a esposa como uma
boneca, por causa de sua aparência física e modos, com sua feição de menina, e
ainda a brincar com bonecas, passou a achar que seria um verdadeiro sacrilégio
desvirginá-la. Entretanto, alguns achavam que eles chegaram a ter conjunção
carnal, ainda que insípida ou insatisfatória, mas de que não resultara
gravidez.
Houve
mesmo quem levantasse a suspeita de que a garota não era mais virgem, e que
fora isso que fizera o marido tomar a decisão de ir embora, abandonando a
firma, que depois foi vendida por prepostos de seu pai. Surgiu ainda a incrível
hipótese de que a jovem tinha o hímen demasiado resistente, impedindo uma
satisfatória penetração. E isso provocara o desgosto de Renato, que se sentia
frustrado, conquanto um simples bisturi pudesse ter resolvido o problema. O
certo é que, o que quer que tenha acontecido, o caso ficou em família e
permanece até hoje como um segredo indevassável.
Mesmo
quando o casamento foi desfeito, através de divórcio consensual, muitos anos
depois, nunca Matilde voltou a namorar, muito menos contrair novas núpcias,
embora finos e ricos pretendentes não lhe tenham faltado. Persiste a dúvida
sobre a sua virgindade. Esse ponto nunca, jamais, foi esclarecido. Nem será.”
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