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DEPOIMENTO SOBRE FONTES IBIAPINA
Alcenor
Candeir a Filho
Na sequência de depoimentos sobre
personalidades piauienses que em 2017 venho publicando em portais/blogues do
Piauí (Costa Norte, Bikanca e Poeta Elmar Carvalho), o que vai me tomar menos
tempo é este sobre João Nonon de Moura Fontes Ibiapina, em razão dos textos que
já escrevi sobre ele e sua obra literária na década de 1980, inclusive o
depoimento prestado logo após seu falecimento em 1986 em Parnaíba, todos inseridos
no livro ASPECTOS DA LITERATURA PIAUIENSE, publicado em 1994.
Cumpre-me nesta oportunidade, portanto,
aproveitar partes daqueles textos, adaptando-os ao espírito da série
DEPOIMENTOS, relacionados com pessoas que conheci pessoalmente.
Fontes Ibiapina foi exemplo de
ficcionista, de folclorista e de magistrado.
Através dos romances PALHA DE ARROZ e de
SAMBAÍBA passei a admirá-lo como escritor. Isso lá pelos anos 60. Só viria a
conhecê-lo pessoalmente na década de 70, quando fixou residência em Parnaíba
para exercer a titularidade da Vara de Família. Desde então, tornei-me seu
amigo e de sua esposa Clarice e
filhos Ariosto e Aristóteles.
Privar como advogado do convívio de Fontes Ibiapina na lides forenses, como poeta
nas reuniões da Academia Parnaibana de Letras e como amigo nas conversas em sua
residência representaram para mim uma honra e um privilégio. Sua simplicidade e
seu talento me fascinavam.
Nascido em Picos, Fontes Ibiapina escreveu
vários livros em Parnaíba, onde mantinha no jornal FOLHA DO LITORAL uma coluna
literária.
Foi membro
da Academia Piauiense de Letras e um dos fundadores em 1983 da Academia
Parnaibana de Letras, da qual foi o primeiro presidente, cargo ocupado até o
falecimento em 1986.
Várias vezes premiado em concursos
literários, arrebatou o 1º lugar no VII Concurso Nacional do Clube do Livro,
com o romance VIDA GEMIDA EM SAMBAMBAIA.
Fontes Ibiapina era possuidor de memória privilegiada, “que o destino me pôs
no quengo quando tomei o primeiro fôlego”, como me disse em entrevista. Boa
parte de sua produção literária tem caráter memorialístico, que o levou a
realizar um dos traços mais marcantes de sua obra: o da estilização da
linguagem oral piauiense. Muito do que ouviu na infância e adolescência foi
reproduzido em livro.
A obra de ficção de Fontes Ibiapina (
romances e contos) abrange o processo de
formação sócio-política do povo
piauiense em seus íntimos e substanciais elementos determinativos. A sorte de
seus personagens e seu comportamento diante das situações em que se acham fixados espelham traços da
realidade do Piauí.
Fiel à convicção de que a literatura deve
encerrar um sentido avaliativo da vida com o objetivo de contribuir para o
aperfeiçoamento da consciência humana, Fontes Ibiapina revela-se um dos mais importantes escritores piauienses
de
todos os tempos. Se sua obra não teve ainda
ampla repercussão nacional, a culpa não é dele mas da presunção de intelectuais
dos grandes centros que acreditam, como diria Sílvio Romero, “que o Brasil é a
rua do Ouvidor”. O próprio escritor sabe quanto é difícil fazer literatura no
Piauí, a ponto de nas páginas que antecedem o romance SAMBAÍBA declarar: “Vivo
aqui, nestes cafundós, renitente que nem pinto em pé de cerca, tentando fazer
literatura sem quase ambiente”.
A temática da obra ibiapiniana é muito
voltada para o homem piauiense, mas o que considero mais marcante nela é o
estilo, entendido não apenas como escolha de palavras e construções mas sobretudo como autêntica filosofia do romance
ou do conto. É pelo estilo, concebido na conformidade dessa concepção, que se
destacam escritores como José de Alencar, José Lins do Rego, Mário de Andrade,
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa.
A peculiaridade da linguagem de Fontes
Ibiapina tem sido focalizada por grandes escritores, mas sempre através de
juízos sintéticos. Por isso as opiniões não têm maior consistência, formuladas
que são como que de passagem apenas:
“... TOMBADOR é
interessante, sobretudo pela
fidelidade de tipos, dos costumes, da linguagem.
(José Américo de Almeida)
“Deliciosa a sua maneira de contar! Diz as coisas
diretamente, numa linguagem viva e simples.”
(Caio Porfírio
Carneiro)
“Indiscutivelmente Deus lhe deu talento de
romancista e um linguajar tão peculiar que
nada tem a invejar ao
Guimarães Rosa.”
(Jonas Mohama)
Muito já se falou, embora epidermicamente,
da orientação regionalista da obra de Fontes Ibiapina, que em verdade não
alcançou ainda razoável nível de
compreensão e de interpretação, porque o
regionalismo que a caracteriza ainda não foi estudado devidamente. Se morasse no Rio de Janeiro ou em São Paulo a
obra ibiapiniana, moldada em linguajar regionalista, já teria sido esmiuçada
pelos editores e pelos críticos
literários que comandam o sistema
de reconhecimento e de promoção dos escritores brasileiros.
Para suprir essa lacuna e partindo da distinção proposta por Ferdinand
de Saussure no CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL, segundo a qual “langue” (língua), isto é, o sistema, o
código, a estrutura linguística imposta como norma a todos os membros da
comunidade, não se confunde com “parole” (fala), que representa a mensagem, o
discurso, o estilo, a atividade comunicativa diversificada e individual, - é
que escrevi o estudo denominado “Aspectos da Linguagem de ‘Sambaíba’”,
publicado no livro ASPECTOS DA LITERATURA PIAUIENS. Nesse ensaio analiso a
presença da variante expressiva, das frases feitas e provérbios, das
aliterações, da sequência de períodos curtos e simples e parataxe, dos
toponímicos, da intensidade verbal, das negativas duplas, do vocabulário, etc.
Fontes Ibiapina era
um apaixonado leitor de poesia, que sabia de cor e salteado milhares de versos
da literatura de cordel. Admirador de Castro Alves e Augusto dos Anjos, vi-o
diversas vezes declamar na íntegra “O Navio Negreiro”, “O Livro e a América”
“Vozes d’África”, dentre outros poemas do poeta baiano. De Augusto dos Anjos
apreciava principalmente “Monólogo de uma Sombra”, “Psicologia de um Vencido” e
“As Cismas do Destino”. Embora leitor contumaz de poesia,
ele não admitia ser chamado de poeta, tendo declarado o seguinte em entrevista
a mim concedida e publicada na revista PRESENÇA (Ano IV, Nº 10, Janeiro a Março
de 1984):
“A
quem me xinga de poeta, tenho até vontade de dizer
nome feio, ou
melhor, uma expressão licenciosa daquelas bem
pesadas. Quem
me apelida de poeta, das duas uma: ou é analfabeto
de pai e mãe, parteira e vizinhança, ou nunca leu sequer uma página
de meus quatorze livros editados, três dos quais já em 2ª edição.”
Ainda que o grande prosador não gostasse
de ser chamado de poeta, escreveu alguns
poemas, sempre mantidos na gaveta, ora escapando um aqui outro ali, como este
soneto dedicado à sua filha ao completar um ano de idade e ao seu irmão gêmeo
natimorto, transcrito na ANTOLOGIA DE
SONETOS PIAUIENSES, de Félix Aires:
ALEGRIA E TRISTEZA
Ao despontar a bruma do
oriente
sobre o teu sacrossanto
calendário,
meu coração transborda-se
contente
ao contar-te o primeiro
aniversário.
Arcanjo loiro, divinal
semente,
seja por Deus guiado o teu fadário,
por eficaz santelmo, na
corrente
da crença, da esperança
e do rosário.
Os meus risos se fundem com os
prantos
que se desprendem
igualmente aos cantos
nesse galho, onde tudo
floresceu.
Sorrindo canto a tua
santidade
e, ao mesmo tempo, choro
com saudades
do irmãozinho que nem sequer
nasceu!
A contribuição de Fontes de Ibiapina no
folclore foi notável e teve pleno reconhecimento na voz da maior autoridade
nacional no assunto: Luís da Câmara
Cascudo.
Seu prematuro desaparecimento foi um rude
golpe para a cultura brasileira, que muito mais podia esperar ainda de seu
extraordinário talento.
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