quarta-feira, 25 de abril de 2018

A CASA DOS MEUS PRIMEIROS DIAS

A dona da casa na sala de jantar cercada por alguns netos e netas


A CASA DOS MEUS PRIMEIROS DIAS
  
José Pedro Araújo
Romancista, historiador e cronista

Por quanto tempo a imagem de uma pessoa fica impregnada ao local em que habitou por um longo período? Alguns meses? Muitos anos? Eternamente, considerando-se a eternidade como o tempo em que permanecemos vivos? Essa pergunta veio a minha mente quando voltei a casa onde nasci, poucos meses após o voo definitivo da minha mãe para os campos celestiais que ela tanto cantou e almejou. Naquele momento estava a minha irmã juntamente com minhas cunhadas a arrumar algumas coisas deixadas por ela. Aquela casa toda tinha( e tem) a mão dela, o jeito dela, o gosto dela, enfim. Não foi uma tarefa fácil para aquelas pessoas, obrigação que me furtei de realizar.

No final, pegaram-se algumas fotografias, alguns escritos com a caligrafia bem desenhada que ela se esmerava em fazer, além de alguns poucos bricabraques que resolveram levar. O resto ficou tudo lá, do jeito que estava. Ninguém teve coragem de remover os quadros das paredes, os bibelôs das estantes; ou desarrumar a coleção de fotos da família que ela mantinha em vários móveis espalhados pela casa. Mas a presença dela está em todo o ambiente, desde a porta de entrada em que ela nos recebia com gestos largos e sorriso alegre e cintilante.

E o que fazer então com aquela casa que tem a sua imagem em cada canto, em cada centímetro, mesmo que desnudada dos seus móveis? Decidimos que ficaria para o meu irmão caçula que reside na cidade a tarefa de manter funcionando a habitação da família. Deste modo, poderemos adentrar sempre que quisermos para matar essa saudade eterna que habita conosco; esse sentimento arraigado no mais íntimo do nosso ser.

A propósito disto, não sei se laboramos por uma boa causa ao passar para o meu irmão a responsabilidade de manter a nossa casa de portas abertas e receptivas. Para ele tem sido difícil transitar por ela e encontrar mamãe em cada pedacinho de espaço, em cada móvel espalhado pelo seu interior. Dizia-me ele, poucos meses após a passagem da nossa mãe, que ainda não conseguia dormir lá, e por isso não havia feito a sua mudança definitiva para lá. E ao mudar-se, tempos depois, pude observar que manteve tudo da forma que mamãe deixou: os móveis, os eletrodomésticos, os quadros nas paredes, as louças na cristaleira e as panelas no paneleiro. Tudo como ela deixou. Não teve coragem de mexer em nada ainda, dar uma arrumação à casa à sua feição e gosto.

Talvez não tenhamos sido tão camarada ao deixarmos a responsabilidade com ele de cuidar do espaço que mamãe organizou para nós e que nos traz tantas lembranças. A presença quase física dela naquela casa termina por se transformar em um fardo para ele na hora de proceder alguma mudança no ambiente que agora é seu e da sua mulher. Apesar de termos lhe dito que, como a casa agora é sua, poderá arrumá-la da forma que bem lhe aprouver. Mas isso, bem sei, virá com o tempo, quando as saudades estiverem bem agasalhadas e transformadas em lembranças felizes.

Já tinha sido difícil habitar naquela velha casa depois que papai partiu. As suas lembranças também ficaram em todos os cantos, e lá permanecem. Mas tínhamos o atenuante de encontrar lá o sorriso cativante dela, a sua alegria quando nos recebia para alguns dias de convívio com o nosso passado tão saudoso. Agora as coisas ficaram bem mais difíceis. Daí a pergunta: foi um gesto de bondade passar a casa em que as digitais da nossa mãe, e do nosso pai, estão em todos os centímetros quadrados do seu espaço amado?

Ocorreu-me de escrever o presente texto depois que eu li uma crônica intitulada “Recordações da Província na Metrópole”, da lavra da acadêmica Ceres da Costa Fernandes, imortal da Academia Maranhense de Letras, com residência no Rio de Janeiro. No texto muito bem elaborado e emotivo, ela relata o que sentiu ao ter que desocupar um apartamento que pertencera à sua mãe para pô-lo à venda. A cronista lembrou-se de uma canção francesa que aprendera na sua infância em que um menino tentava vender uma gaiola que pertencera a um canário que já não existia mais. “Mon Canari s’est Envolé”.

Assim nos sentimos nós. Mas, como passar adiante uma casa que tantas recordações nos traz, sem nela entrar? Que fique então com quem pode manter um pouco das suas vivas lembranças, mesmo que apenas parte delas, e que possamos adentrar a ela com o sentimento de ainda nos pertencer. Desculpe, meu irmão, mas o ônus maior caiu sobre os teus ombros. Ficou contigo a tarefa de manter vivo o ambiente alegre que nossos pais construíram para nós, e que tantas lembranças nos traz.  

Fonte: Blog Folhas Avulsas 

2 comentários:

  1. Obrigado, Poeta!
    Foi deveras dolorido a tessitura da crônica que você ora publica no seu conceituado blog.

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  2. Como diria o filósofo Bam Bam do BBB,do alto de sua sabedoria de cabeça vazia, o sofrimento "faz parte".

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