quarta-feira, 25 de julho de 2018

A SAGA DE VAQUEIROS E BOIS BRAVOS


Fonte: Google
                                                                                                                                 
A SAGA DE VAQUEIROS E BOIS BRAVOS

Valério Chaves
Des. inativo do TJPI


            O mundo mágico da poesia popular envolto em mistérios, crendices, romances de cordel e encantamento - capaz de transformar pessoas, animais, coisas em entidades e outras estórias fantásticas - faz parte da memória coletiva extraída do cenário da civilização do Nordeste brasileiro e do dia a dia de uma figura  sofrida que leva a vida debruçada no lombo de um cavalo, protegida pela fé no seu padroeiro e por sua armadura feita de couro curtido.

            Essa personagem sofrida, paciente e forte é o homem vaqueiro que nasce, cresce e morre na labuta diária das fazendas de gado; que gasta a maior parte de seu tempo pondo a vida em perigo, lidando com animais desgarrados nas caatingas esturricadas, entre galhos e espinhos ou à procura de água e pastagens durante o período de seca no sertão.

            Para tanto, usa trajes apropriados: perneira (calça), gibão, guarda-peito, chinelo, chapéu de couro, além do chicote, ferrão, esporas e um cavalo de confiança.

            A descrição dessa vestimenta tem, no fundo, um propósito verdadeiramente sentimental. É que o autor desta crônica, nos albores de sua juventude, talvez por influência do ambiente rural em que nasceu ou espelhado na profissão do pai, exerceu a profissão de vaqueiro. E nessa condição, ouviu muita gente falar sobre a pega de dois bois bravos (um liso e um raposão) nascidos e criados nas matas fechadas das fazendas Tabuleirão, Boi Morto e  Campo Limpo, situadas na região dos municípios de Porto Alegre e Antônio Almeida, centro-sul do Piauí.

            Sem datas precisas, mas sabe-se que foi em meados de 1945 que a pega dos bois causou enorme alvoroço entre vaqueiros dessa região - alguns levados pela fama dos animais (mandingueiros como eram chamados) pois ninguém, mesmo os mais afoitos, conseguiam pelá-los pelo rabo, dado a velocidade quando corriam parecendo um raio por entre a paisagem seca das chapadas e matas fechadas. Até feiticeiros e atiradores famosos se aventuraram, sem êxito, na pega dos bois do fazendeiro Militão.

            Na esperança de alcançar maior fama, muitos faziam até promessa com santos milagreiros; outros se inspiravam em literatura de cordel como o romance “O Boi Mandingueiro”, cujas primeiras estrofes cantavam ou recitavam de improviso, dizendo assim:

            No Rio Grande do Norte
            Havia um fazendeiro
            Era muito respeitado
            Pela fama do dinheiro
            Criava numa fazenda
            Pra qualquer encomenda
            Um grande boi mandingueiro.

            Esse bicho quando corria
            Segundo diz o boato
            Tinha equilíbrio no corpo
            Com ligeireza de gato
            Por meio de forte mandinga
            Corria mais na caatinga
            Do que veado no mato                      

            Mas pra encurtar a conversa, vejamos, em resumo, como terminou a aventura da pega desses bois contada em versos e rimas de moradores nas fazendas da região, valendo citar, a título de homenagem, o nome de Antônio Saturnino, Manoel Maria e minha mãe Dorcas Ferreira Pinto,  todos já falecidos.

            No dia 13 de julho do ano de 1945, ao romper do dia, um vaqueiro chamado Zé Valério, saiu de casa dizendo para a mulher que naquele dia ia pegar o boi raposo nas matas do Bebedouro.

            O boi ao pressentir a presença do vaqueiro, correu veloz como relâmpago, abrindo brechas na mata. O vaqueiro, por sua vez, para não perder de vista, seguiu no encalço passando pelas brechas que o boi abria, saltando montes de pedras e quebrando galhos de pau.

             Depois de alguns minutos de carreira, graças a uma maior rapidez do cavalo, o vaqueiro pôde alcançar o rabo boi, a ponto de com um só impulso, enfiar sua faca afiada sobre a anca do animal, até encostar no cabo, vindo este cair ao chão, berrando, já quase sem vida, aos pés do herói valente.

            A morte do raposão marcou assim a saga de vaqueiros e bois do Piauí cujo final aconteceu graças a “um cavalo corredor e um vaqueiro de valor”, como registrado na memória do povo e nas últimas estrofes do romance feito na época por quem viveu e testemunhou esta epopeia sertaneja ocorrida em nosso Estado.

            Faço o registro dessa peleja entre o homem e o boi apenas para mostrar que o Piauí ainda é pobre na divulgação de histórias de sua gente que sofreu, sorriu, viveu e morreu, ou permanece no interior trabalhando na dureza dos roçados, na criação de gado, enfim, levando vidas secas, vítima do abandono, da exploração eleitoreira e da deseducação, sob o olhar desprezível das lideranças políticas.  

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