Sr. Tempo
Wilton Gutemberg da Cruz Pires Jr.
Ou seria ‘‘contei’’, dado que esse texto
já foi escrito no momento em que você o lê? Ou ‘‘contarei’’, dado que você
ainda não o leu ou tampouco eu, no momento em que escrevo, cheguei a
terminá-lo? Ou ‘‘contaria’’, dado que o futuro é incerto e pode ser que eu
sequer chegue a concluir essas palavras? Acuse-me de fazer complicações
desnecessárias, mas não como o honesto acusa a desonestidade. Haveria nisso uma
hipocrisia inconsciente, porque em verdade você sofre da mesma ansiedade em
relação ao que foi, ao que é e ao que pensa que será. É sobre a desnecessidade desse
comportamento que escrevo (escrevi; escreverei; escreveria).
O Sr. Tempo é um trabalhador constante,
daqueles que nunca perdem o foco. Ao relógio, que tenta acompanhá-lo, olha com
desdém. E por todo esse foco não dialoga conosco, ignora nossos pedidos e
possui franca indiferença aos nossos lamentos. Nunca poderemos acusá-lo,
entretanto, de nos deixar sozinhos. Ao que depender dele, nunca conheceremos a
solidão. Mas eu entendo, você bem que gostaria de ter alguns momentos de
privacidade. Entretanto, não adianta implorar; cá entre nós, acredito que Deus fez
do Sr. Tempo surdo, impassível ao choro mais escandaloso.
A mitologia grega ensinou-nos duas
formas de lidar com esse companheiro inafastável. Por um lado, os gregos
antigos conceberam Chronos: o titã monstruoso que engole os deuses no café da
manhã. Destrutivo, faminto e que a tudo consome. Esta é a representação do
tempo que envelhece, desgasta e a tudo torna pó. Por outro lado, os gregos
antigos conceberam Kairós: um deus jovem e gracioso, sempre nu. Rápido, estava
em fuga constante dos outros deuses, que tentavam alcançá-lo como em um
pega-pega e que dificilmente era capturado. Esta é a representação do tempo que
é instante oportuno, um palco na existência em que performamos a história. É o
momento presente, em que devemos agarrar o agora e fazê-lo nosso.
Das duas tentativas de ilustrar o Sr.
Tempo, prefiro a segunda. O tempo como Kairós evidencia que o tempo é, mas
nunca foi nem tampouco será. Veja, o passado não existe. O que se passou deixou
de existir. Já o futuro, esse que ainda não é concreto, ninguém entre os homens
pode garantir que existirá. Portanto, passado e futuro são abstrações, de modo
que trocar o presente por lembranças e expectativas não costuma ser um bom
negócio.
Infelizmente, a maioria de nós
permite-se seduzir pelo incômodo do que foi, reinterpretando o passado à luz
dos nossos sentimentos, encantada por nossos próprios dramas. Quando não, roemos
as unhas pelo que achamos que virá. Em ambos os casos, surgem conjecturas
feitas de imaginação e impressões de realidade. Ocorre que, enquanto isso, o
Sr. Tempo continua a trabalhar, fazendo passar instante após instante, precisamente
aquele que poderia ser usado para remediar erros do passado e condicionar o
futuro desejado. O instante que poderia ser o remédio para nossas preocupações.
Certamente, fazer do presente uma
oportunidade não é fácil. Ora, parte importante do mito é a dificuldade de
agarrar Kairós, a mais fugidia das divindades. Estar ciente do agora é profundo
exercício do domínio de si mesmo, talvez impossível de ser contínuo. Resta
tentar.
Mas apresse-se, pois as oportunidades
para isso são finitas. Por menos simpático que seja esse aspecto, preciso
reconhecer que o Sr. Tempo também é Chronos. Significa que o tempo que escorre entre
nossos dedos é a nossa existência carnal, que inevitavelmente terminará. Cada
instante é um passo para mais perto da morte. E preparando sua chegada, o vigor
do corpo se esvai, rugas aparecem e a mente enfraquece. Assim, tudo que os mais
vaidosos amam desaparece, deixando-os viúvos entristecidos, ao ponto de que
alguns até desejarão que a morte se adiante. Há ainda o fato de que não nos é
permitido saber exatamente quantos desses instantes ainda nos restam, obrigando-nos
a gastá-los sem saber se resta algo na conta.
Mas, pensando bem, não dá esse aspecto
ainda mais substância ao se encarar o tempo como valiosa oportunidade? A
existência de um termo final para nossas vidas enche o ofício do Sr. Tempo,
abstrato, de uma escassez própria daquilo que é concreto. Os instantes, que um
dia pararão de chegar, tornam-se cada um uma pepita de ouro, que ao passar por
nossas mãos poderá escorrer em vão entre nossos dedos ou, para os mais atentos,
ser investida em algo que a dê algum significado mais elevado. Eis o peso sobre
nossas escolhas acerca do tempo.
Prometi que combateria preocupações
desnecessárias, mas receio que posso ter, ao invés disso, aumentado a neurose
em alguns leitores. Mas a prudência, ao invés de usar desse raciocínio como
mais um motivo para lamentar-se e desperdiçar o momento, o fará lição para se
deliciar com o presente, reconhecendo seu caráter determinante tanto para o
passado quanto para o futuro, enxergando a oportunidade renovada a cada
instante. Porque o Sr. Tempo pode não ser dos mais simpáticos, mas é qual um
minerador generoso, presenteando-nos com pepitas de ouro extraídas do
desconhecido. Cabe a você ser um ourives, forjando delas as joias mais
preciosas.
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